O governo brasileiro acaba de anunciar o índice anual (2003-2004) de desmatamento na Amazônia. Segundo o INPE, 2.6 milhões de hectares (26 mil km2) de florestas vieram ao chão. Somente em 1995 registrou-se um valor maior (2,9 milhões ha) do que o atual. Tal fato confirma a suspeita de que um novo patamar de desmatamento foi atingido, já que a taxa média para os anos 90 não ultrapassou os 1.7 milhões de ha. Contudo, passada a indignação de praxe, a sensação é que o debate gerado não serviu para muita coisa. Talvez porque o debate tenha sido míope. O excessivo foco das discussões sobre o valor da taxa de desmatamento tem nos privado de uma discussão mais profícua.
Todos conhecem as causas do desmatamento, mas pouco se debate sobre o tipo de desmatamento que é e não é aceitável ou necessário. Todos concordam que as taxas com que a floresta vem sendo derrubada devem ser reduzidas.
Há pouca concordância sobre quanto deve ser uma redução satisfatória, como consegui-la e onde implementá-la. A miopia vem, portanto, da falta de qualificação do desmatamento. Para isso é necessário aceitar a premissa de que em algumas áreas ele é aceitável. Assumindo tal premissa, talvez seja mais fácil identificar e atuar contra aquele desmatamento indesejável do ponto de vista social, econômico e ambiental.
No ano passado, em 2004, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM, publicou um livro intitulado “Desmatamento na Amazônia: indo além da emergência crônica”, onde apresentamos sob qual ótica o desmatamento seria apropriado ou inapropriado. O desmatamento inapropriado seria aquele que visa apenas tomar posse de terras, ocorre em terras que não são aptas a produção pretendida (morros, alagados, etc) e, por conseguinte é ilegal (atinge a reserva legal e as áreas de proteção permanente).
Por sua vez, o desmatamento apropriado seria aquele, necessariamente legal, mas também o realizado em solos aptos para agricultura e, portanto, com baixo risco de abandono precoce da atividade. Isso separaria o desmatamento que decorre das ações de grilagem – como aquele que tem afetado aceleradamente a região da Terra do Meio e da abertura da estrada BR-163, no Estado do Pará, onde, segundo dados de 2003/2004, se concentram três dos cinco municípios campeões do desmatamento – daquele desmatamento autorizado e permitido para cada proprietário no âmbito do Código Florestal.
Definições como estas poderiam ser úteis para qualificar o debate sobre o desmatamento na Amazônia. No entanto, não há profusão de tal debate. E isto acontece pela falta de informações claras e oficiais sobre as origens e características do desmatamento. Quem derruba mais, em que tipo de fronteira e sob qual dinâmica (econômica e social) local (e não somente regional ou nacional) a floresta é desmatada, são ainda questões sem respostas claras.
Sem conhecer tais respostas, fica difícil criar as bases para uma escolha acertada entre desmatamento desejável e indesejável. Se superarmos tais entraves, será mais fácil compreender o espanto em relação ao anúncio das taxas de desmatamento e nos orientarmos na busca de uma melhor política de ocupação da Amazônia. A correção da miopia só será conseguida quando deixarmos de discutir a flutuação das taxas para debatermos de uma vez por todas que tipo de ocupação da Amazônia os brasileiros querem e sob quais condições.
Fronteiras
Nas “Fronteiras Empresariais” de agropecuária consolidada, onde a viabilidade da agricultura em grande escala é alta (Norte do Mato Grosso e Sul do Pará), o desafio principal em curto prazo é o de fazer com que os produtores cumpram as determinações do Código Florestal. Uma oportunidade neste sentido é a implementação do sistema de licenciamento de propriedades rurais do Governo do Mato Grosso atrelado à certificação de propriedades e de produtos do agronegócio. No entanto, falta definir medidas complementares que desestimulem o desmatamento inapropriado e ilegal. Incentivos de mercado para aqueles que produzam de forma ambientalmente sustentável, como já ocorre na exploração florestal, poderão proteger os recursos naturais em paisagens de alta produtividade agrícola e pecuária.
Nas “Fronteiras Familiares”, onde a agricultura familiar está consolidada ou em processo de consolidação, como a Transamazônica, o desafio principal é fortalecer e apoiar as iniciativas de gestão de recursos naturais já em andamento, como o Proambiente, as casas familiares rurais e investimento na gestão de unidades de conservação (p.ex. Terra do Meio). Apesar do desmatamento continuar nessas áreas, motivado principalmente pela expansão das áreas de pastagem, existem associadas a esta, outras práticas de uso do solo mais diversificadas e que trazem benefícios mais diretos para um maior número de pessoas que vivem na região. Portanto, estas áreas apresentam um consórcio de atividades associadas ao desmatamento que é socialmente mais aceitável.
Nas “Fronteiras de Expansão Explosiva”, onde o governo está ausente ou inexpressivo, o desmatamento ocorre de maneira frenética tendo a grilagem de terras e a exploração madeireira ilegal como sua força motriz, as intervenções devem ser no sentido de conter o desmatamento e a exploração madeireira desordenada com exemplos de punição imediata dos principais agentes da ilegalidade, até que a implementação de um plano de ordenamento e gestão territorial seja possível. Por exemplo, o desafio principal em áreas como Castelo de Sonhos, Novo Progresso e Moraes de Almeida, na rodovia Cuiabá-Santarém, é o de prevenir o desperdício dos recursos naturais pelo desmatamento em áreas inapropriadas para a agricultura e pecuária e conter a extração ilegal de madeira.
Focalizando o debate sobre o desmatamento na Amazônia
1. O desmatamento deve ser encarado a partir da premissa de que há tipos de desmatamento que podem ser aceitos e trazem benefícios para a sociedade. O critério de aceitação neste caso seria estabelecido pelo nível dos benefícios para a sociedade e do impacto que causam sobre o ambiente. Ao assumir essa premissa, fica mais fácil atuar de maneira focalizada sobre aquele desmatamento inapropriado.
2. O desmatamento “inapropriado”, que deve ser alvo de programas de redução, é aquele que: (a) visa apenas tomar a posse da terra para especulação; (b) ocorre em terras inapropriadas para a agricultura ou a pecuária devido ao relevo acidentado, solos inadequados, altos índices de precipitação, distância elevada dos mercados e ausência de estradas; (c) é pouco produtivo; (d) é ilegal (atinge a reserva legal e as áreas de proteção permanente); (e) ocorre em áreas de elevado valor para a conservação ou utilização sustentável da biodiversidade (áreas ainda não protegidas por unidades de conservação); (f) ocorre em áreas onde a melhor opção econômica de uso da terra é florestal – seja para produção madeireira, não-madeireira, ou ambas.
3. O desmatamento pode ser considerado “apropriado” quando reunir os seguintes critérios: (a) seja realizado de forma legal, cumprindo os preceitos das leis ambientais (p.ex. o Código Florestal); (b) seja realizado em solos aptos para agricultura e produtivos; (c) ocorra em áreas com infra-estrutura adequada e, portanto, com baixo risco de abandono precoce da atividade; (d) traga benefícios socioeconômicos e ambientais às populações tradicionais da Amazônia (quilombolas, caboclos, indígenas) e pequenos agricultores.
4. Para evitar o desmatamento “inapropriado” será necessária uma estratégia integrada baseada em processos de planejamento ao longo de novos corredores econômicos, com a participação das várias esferas de governo, incluindo as prefeituras e os diversos atores sociais existentes na região. Decisões econômicas e políticas interferem diretamente nos fluxos migratórios e no tipo de ocupação ao longo dos corredores econômicos da Amazônia. Estes corredores devem ser tratados como uma unidade geográfica dos processos de planejamento regional participativo. As rodovias em asfaltamento representam novos focos de desmatamento e são as áreas onde o governo e a sociedade civil podem ter o máximo de influência sobre a dinâmica de conversão da cobertura vegetal.
Este processo já está em andamento, liderado pela sociedade, na Transamazônica, na Cuiabá-Santarém e na Transoceânica (estrada para o Pacífico).
5. Dentro dos planos de desenvolvimento de cada corredor econômico é necessária uma abordagem diferenciada para cada tipo de fronteira, visando a gestão de recursos naturais que maximize os benefícios para a sociedade amazônica e brasileira como um todo.
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Criado em 1995, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM é uma organização ambiental não governamental sem fins lucrativos. O IPAM reúne pesquisadores e educadores que compartilham o compromisso de gerar informações científicas e formar recursos humanos, contribuindo para um processo de desenvolvimento da Amazônia que atenda as aspirações sociais e econômicas da população, e ao mesmo tempo mantenha a integridade funciona do ecossistema regional.
Ane Alencar – Pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM
Fonte: Revista Eco 21, ano XV, Nº 103 junho/2005.