Projeto Drake: a Polícia Federal contra a biopirataria

Muito foi escrito sobre o fenômeno da “biopirataria”, mas pouco se sabe sobre o que realmente se esconde por trás dessa modalidade criminosa. Observamos freqüentemente, a divulgação de notícias sobre cidadãos alemães, suíços, estadunidenses ou japoneses, sendo detidos, nesse ou naquele aeroporto brasileiro, tentando embarcar com sapinhos, aranhas, plantinhas ou até mesmo vidros contendo extratos, fungos e outros tipos de material biológico de dificílima identificação, do ponto de vista da fiscalização policial. Seriam todos esses casos biopirataria? Provavelmente não. Apesar disso, a biopirataria existe sim. E certamente se consubstancia numa das mais rentáveis atividades criminosas.

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Sua ocorrência encontra explicação no fato de estarmos vivendo o alvorecer do “Século da Biotecnologia”, segundo o renomado ambientalista estadunidense Jeremy Rifkin, que, por sua vez, prenuncia o fim da saga industrial da forma que a conhecemos.

Para esta nova fase, que prevê, sem exageros, a reconstrução do mundo pela valorização dos genes, a humanidade nunca esteve tão despreparada.

Voltando à situação do Brasil em face de tal contexto, devemos entender preliminarmente que o nosso País, junto com Zâmbia, Índia, Costa Rica, Indonésia, Malásia, Colômbia e alguns outros, é membro do seleto grupo de nações megadiversas; isto é, campeãs em biodiversidade nas cinco formas de vida conhecidas no Planeta: animais, plantas, algas, fungos, protozoários e bactérias.

Essa riqueza, a matéria-prima que alimentará a nova onda industrial, a era da biotecnologia, está aqui na Amazônia, na Mata Atlântica, no Cerrado, na Caatinga, nos Campos Sulinos, no Pantanal e, sobretudo, acrescidas pelos conhecimentos tradicionais desenvolvidos nos últimos milhares de anos pelos povos indígenas, comunidades quilombolas e locais.
Aliás, não seria demais salientarmos que dentre os países megadiversos, o Brasil fica com a medalha de ouro, pois constitui a nação mais rica em termos de biodiversidade, possuindo milhões e milhões de diferentes formas de vida em seus muitos e conhecidos ecossistemas.

Para melhor entender o processo que leva à ocorrência da biopirataria, devemos saber que as patentes industriais dos inventos tecnológicos se baseiam, hoje em dia, na obrigatoriedade de se observar três premissas: a novidade, o passo inventivo e a aplicação industrial. Conseqüentemente, o Tratado Sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionado ao Comércio Internacional – TRIPS, acordo da Organização Mundial do Comércio – OMC, de 1995, permite praticamente a difusão e a proteção de patentes em todos os 146 países membros da OMC.

A OMC se reuniu o mês passado em Cancún, no México, onde se discutiu, dentre outros assuntos, a necessidade de se exigir de seus membros, que mencionem a origem dos recursos genéticos utilizados em seus países, bem como o consentimento prévio do detentor primário do insumo genético, com vistas a uma repartição justa de benefícios que possa atingir os Estados e as comunidades originadoras dos saberes tradicionais e da própria matéria-prima natural.

Cabe ressaltar que, a exemplo do que ocorreu na Era Industrial, a maior parte do manancial genético usado como base para a pesquisa biotecnológica, se encontra nos países do chamado Terceiro Mundo, mormente em suas florestas tropicais. Em contrapartida, a indústria que detém a refinadíssima tecnologia para desenvolver tais pesquisas, se localiza nos países desenvolvidos do hemisfério Norte, em sua maioria nos Estados Unidos.

Com o modelo atual, ao se registrar a patente de um novo produto ou processo que gere alguma riqueza, seu detentor receberá com exclusividade, nos 20 anos seguintes, lucros verdadeiramente astronômicos (depois desse prazo a patente passa a ser de domínio público). Não podemos esquecer que a biotecnologia será utilizada na solução de problemas vitais e estratégicos para a sociedade, tais como doenças, males hereditários e a própria fome.

O biopirata é aquele que, negando-se a cumprir formalidades e, desconhecendo e desrespeitando as fronteiras e a soberania das nações (as quais garantem o acesso legal à biodiversidade e também uma repartição justa de benefícios – conforme estabelecido na Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992), resolve agir por conta própria, invadindo santuários ecológicos em busca do novo ouro, quase sempre utilizando uma fachada para encobrir seu real intento. Com a atividade organizada e bem planejada dos biopiratas, o Brasil estaria perdendo riquezas incomensuráveis que poderiam, inclusive, num futuro muito próximo, frente às novas perspectivas industriais, garantir independência econômica ao nosso País.

A Polícia Federal, com a criação de Delegacias especializadas na repressão aos crimes ambientais nos 27 Estados e a implementação do Projeto Drake, que prevê, entre outras medidas, o trabalho de inteligência policial, deu um grande passo no sentido de graduar o conhecimento sobre os meandros da biopirataria, ajudando a salvaguardar uma das maiores riquezas do País. Também deveria existir em nosso ordenamento jurídico, uma reprimenda penal que venha, definitivamente, inibir tais atividades, provendo à polícia judiciária e, sobretudo à Justiça, instrumentos coercitivos eficazes.
A conduta da biopirataria, seja com o simples acesso ou mesmo com remessa ao exterior de material genético oriundo de nossa vida selvagem, hoje recebe acolhida no Art. 29 da Lei 9.605/98, dispositivo que não atinge o dolo específico do biopirata, prevendo uma pena que apenas impõe ao transgressor algumas horas na delegacia, tempo suficiente para a lavratura de um simples termo circunstanciado, formalidade prevista para os casos de delitos de menor potencial ofensivo. Não há, dessa forma, prisão em flagrante do infrator porque a biopirataria ainda é considerada um crime menor, de pequena monta.

O Artigo 29 da Lei 9.605/98, que trata da questão dos animais silvestres, foi concebido com o intuito de adequar condutas de criminosos que agem em desfavor da fauna tão-somente apanhando, capturando, caçando, transportando, entre outras modalidades, com o fito de, no máximo, comercializar ou mercadejar com os animais, sem o caráter de prospecção de conhecimento e produção de riqueza. Não há uma previsão legal específica para aqueles que subtraem insumos da vida silvestre com fins industriais, de alto lucro.

O sujeito que leva vinte sapinhos para vendê-los por 1000 dólares num pet shop em Amsterdã, recebe igual tratamento daquele que leva os mesmos 20 sapinhos para uma indústria biotecnológica que estuda, isola e patenteia uma molécula a partir de toxinas retiradas destes animais, gerando bilhões de dólares durante duas décadas, em favor dessa indústria.

Por derradeiro, não se trata de uma tentativa quixotesca de tentar deter o avanço tecnológico, que de uma forma ou de outra acabará beneficiando a sociedade mundial como um todo, mas sim de vincular tal avanço – e seus lucros – àqueles que detêm originariamente, não apenas o conhecimento de seus benefícios, mas, sobretudo, suas próprias matrizes naturais.

A Polícia Federal tem o firme propósito – dentro de sua missão constitucional -, de defender este patrimônio nacional, tão importante e estratégico para a nossa soberania e desenvolvimento. 

Jorge B. Pontes – Delegado de Polícia Federal. Chefe da Divisão de Repressão aos Crimes Ambientais da PF. Revista Eco 21, Ano XIII, Edição 32, Outubro 2003. (www.eco21.com.br)