O capítulo da Agenda 21 voltado à agricultura sustentável preconizava moratória para os Cerrados. Não se tratava de menosprezar a importância do Centro-Oeste na expansão da cultura de grãos nem de subestimar o papel estratégico das grandes áreas cultivadas para o abastecimento interno e para as exportações brasileiras.
Os estudos especializados mostravam, entretanto, que era possível aumentar a oferta no Centro-Oeste sem o sacrifício do bioma dos Cerrados no Norte e no Nordeste do País: o segredo estava nas técnicas que permitiriam substituir milhões de hectares de pastagens degradadas por lavouras de grãos e, sobretudo, de soja. Isso permitiria recuperar os solos, aumentar a produção em Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso e, em tese, reduzir a pressão sobre novas áreas em regiões mais distantes, como Maranhão, Piauí ou Pará.
Treze anos após a publicação da Agenda 21, impõe-se uma constatação cujas conseqüências vão muito além do setor agrícola e se referem ao conflito entre crescimento econômico e sustentabilidade ambiental. Os Cerrados não foram poupados por nenhum tipo de moratória.
Sua destruição prossegue e os próprios fazendeiros que acabaram comprando áreas de pastagem para fazer lavouras no Centro-Oeste estão entre os primeiros a abrir novas áreas, em regiões distantes, para aí implantarem uma agricultura altamente especializada.
Pior: nas áreas do Centro-Oeste em que as pastagens foram substituídas por lavouras homogêneas houve imenso prejuízo ambiental, para o qual chama a atenção a dissertação de mestrado de Rafael Feltran-Barbieri (“Cerrados sob Fazendas – História Agrária do Domínio dos Cerrados”), defendida recentemente no Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP.
O que sob o ângulo produtivo se chama de pastagem degradada contém um importante manancial de biodiversidade animal e vegetal, bastante adaptado a formas tradicionais de criação de gado. São fazendas cujos métodos produtivos estimulam a manutenção de superfícies florestais e cujas pastagens preservam partes significativas do meio natural.
Os agricultores que compram e exploram essas fazendas no Centro-Oeste – em geral eles vêm do Sul do País – recuperam as áreas degradadas, sob o ângulo agronômico.
Mas essa recuperação elimina a biodiversidade ainda remanescente nos sistemas produtivos de pastagens. O balanço entre a perda ambiental daí decorrente e o ganho produtivo trazido pela cultura entrante não é fácil de avaliar. Há, porém, uma medida do impacto dessa ocupação sobre as novas áreas de lavoura. E é aí que os resultados são preocupantes.
Rafael Feltran-Barbieri visitou 77 fazendas em dois municípios goianos perto do Parque Nacional das Emas, em Goiás. Entrevistou seus proprietários ou os responsáveis por sua gestão.
E o resultado é estarrecedor: 88% dos fazendeiros desconsideram o Código Florestal e mais da metade desses não possui nem um único metro quadrado de vegetação nativa. O aumento produtivo apoiou-se na quase completa eliminação de qualquer vestígio da biodiversidade previamente existente.
Há duas soluções possíveis para esse desrespeito à Lei: a primeira consiste em aumentar a fiscalização. Esta solução parece razoavelmente eficiente em regiões onde a agricultura é pouco importante, como na Mata Atlântica de São Paulo. Mas seus resultados serão quase nulos em áreas de expansão da fronteira agrícola.
A segunda solução passa pela maneira como os mercados são organizados. Hoje existem meios técnicos pouco onerosos pelos quais se podem obter, de maneira permanente, os mapas das propriedades agropecuárias por fotografia de satélite extraída da Internet. Se as indústrias condicionarem a compra do produto do agricultor à certificação de que este respeita o Código Florestal haverá um tríplice ganho. A indústria poderá associar seus produtos a um rastreamento capaz de demonstrar a sustentabilidade ambiental de sua oferta.
O País preservará seus recursos naturais e os produtores terão na certificação ambiental um fator de valorização da qualidade de suas práticas. De certa forma, isso é feito com o selo ABRINQ, que comprova a aversão ao uso de trabalho infantil, e mesmo o selo ABIC, que garante ao consumidor a compra de café de fato, e não de poeira torrada.
Os custos de tal política são surpreendentemente baixos tendo em vista os recursos tecnológicos atuais. E seria uma forma de os grandes compradores de produtos agrícolas poderem participar de um processo de planejamento pelo qual o Estado delimitaria novas áreas a serem ocupadas e faria cumprir as restrições ambientais necessárias à preservação das superfícies atuais.
É impossível construir as instituições do desenvolvimento sustentável voltando as costas para o setor privado. Mas não se pode aceitar que a destruição generalizada seja o mal necessário para o crescimento econômico. O rastreamento ambiental é um caminho importante para reduzir o conflito entre expansão produtiva e sustentabilidade. Parece pouco, mas num país como o Brasil representará um progresso fantástico.
por Ricardo Abramovay (Professor titular do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP)