Prioridade da prioridade: reflexões sobre o papel da agricultura familiar

O Presidente Lula já definiu suas prioridades imediatas: o combate à fome e a geração de empregos. Estas são também as prioridades da população segundo pesquisa do IBOPE. Resta saber como o novo governo do PT e seus aliados de primeira e última hora vão enfrentar estes problemas.

Na campanha o candidato Lula insistiu, e não foi o único a fazê-lo, na aceleração do desenvolvimento do país como a chave para resolver estes e muitos outros problemas. Ocorre que estamos numa “sinuca de bico” financeira, herdada dos 8 anos do governo FHC e de uma situação internacional desfavorável, que fazem improvável uma retomada significativa do crescimento econômico, pelo menos nos próximos dois anos.

É preciso ainda lembrar que crescimento econômico não gera necessariamente mais empregos ou, pelo menos, na quantidade e no ritmo necessários. Tudo depende de que setores da economia serão priorizados. O custo por emprego gerado varia de 27 mil reais na construção civil a 850 mil reais nos setores industriais de ponta. Por outro lado, na maioria dos serviços e na indústria a decisão de investir não é do governo embora este possa gerar estímulos positivos para animar os empresários.

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Há um setor em que a decisão do governo é decisiva e é capaz de criar empregos pelo menor custo da praça: a agricultura familiar. Instalar uma família em um assentamento da Reforma Agrária custa entre 13,5 e 17 mil reais apenas. A agricultura familiar, por sua vez, emprega 3 a 4 pessoas em média e vive uma crise profunda. O desfecho desta crise pode ser manter e melhorar a remuneração destes empregos ou, ao contrário, gerar mais desemprego e fome caso não venha a ser enfrentada.

Dos 22 milhões de famintos identificados pelo IBGE mais da metade está no mundo rural e no Nordeste e muitos dos famintos urbanos são rurais que transferiram sua miséria para as cidades.

Enfrentar a crise da agricultura familiar (que inclui a crise de muitos assentamentos da Reforma Agrária) necessita de um bom diagnóstico das suas origens. Há razões históricas: a agricultura familiar foi empurrada para as piores terras, nos ecossistemas mais vulneráveis e com pouca área para cultivar. Por outro lado, os rurais foram os grandes esquecidos das políticas sociais de habitação, saneamento, acesso à água potável, eletrificação, saúde, educação, cultura e lazer. Mesmo que a produção se garanta, as difíceis condições de vida fazem com que muitos rurais abandonem o campo.

Finalmente, a agricultura familiar padece da ausência de um modelo tecnológico adequado para as suas condições. A chamada agricultura moderna – agroquímica e moto-mecanizada – não se adapta às margens de risco e à disponibilidade de recursos da agricultura familiar.

As experiências das ONGs e de inúmeras organizações de agricultores familiares reunidas no Encontro Nacional de Agroecologia, realizado em Setembro passado no Rio de Janeiro, mostram que é possível alcançar grandes incrementos de produtividade com baixos custos e baixos impactos no meio ambiente com a adoção do desenvolvimento agroecológico.

Em particular, projetos que combinaram a adoção da agroecologia com transformação local dos produtos e comercialização controlada por associações de produtores trouxeram grandes aumentos de renda para a agricultura familiar. Ao contrário do que se pensa, a produção agroecológica não é mais cara que a convencional. Se ela se vende por preços maiores quando certificada como orgânica é porque há um mercado disposto a pagar mais pela qualidade dos produtos, mas apenas uma pequena parte da produção agroecológica vai para este nicho. Muito mais se vende competindo nos mercados “normais”.

Ampliar as experiências agroecológicas para o conjunto da agricultura familiar depende de políticas públicas de crédito e assistência técnica que são escassos e restritivos para esta opção tecnológica. Se os recursos do PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar / Ministério do Desenvolvimento Agrário) fossem dirigidos para a conversão agroecológica da agricultura familiar, o custo médio por propriedade seria de apenas 5.000 reais em investimentos e custeio no processo de conversão, sem que houvesse necessidade de mais gastos de custeio posteriormente.

Se supusermos, com bastante otimismo, que todos os 4 milhões de agricultores familiares aderirão à conversão para a agroecologia, o crédito necessário seria da ordem de 20 bilhões de reais, ou de 5 bilhões de reais por ano. Isto é, apenas 50 por cento a mais do que o crédito disponibilizado pelo Pronaf nos últimos anos.

O custo real para o orçamento federal é o subsídio aos juros para a agricultura familiar, que é hoje aproximadamente de 25% do valor do crédito. Este gasto seria muito menor se o Governo Federal adotasse uma política mais racional de apenas cobrir a inadimplência dos agricultores familiares, que gira em torno de 3% do valor das operações, ou seja, um valor de 150 milhões por ano.

O custo da pesquisa e da extensão em agroecologia, na experiência das organizações não-governamentais deste ramo, situa-se na ordem de 150 reais, em média, por agricultor assistido por ano, contra 750 reais (nos cálculos da ASBRAER, associação das empresas estatais de extensão rural) apenas para o custo da extensão convencional. Se todos os agricultores recebessem uma assessoria em desenvolvimento agroecológico, o custo da extensão e pesquisa seria de 600 milhões por ano.

Estes cálculos estão acima do que, na prática, será efetivamente gasto, pois um processo de conversão para a agroecologia dificilmente envolveria todos os agricultores familiares nos 4 anos de governo Lula. No entanto, eles indicam que adotar uma política de conversão para a agroecologia pode ser uma opção barata e sustentável para a agricultura familiar.

Reforma Agrária

A Reforma Agrária pode ampliar esta base de agricultores familiares com custos baixos para a geração de empregos. Com os custos indicados acima para assentar uma família, o estado teria que desembolsar, em média, 4 bilhões por ano para assentar cerca de 1 milhão de famílias. Como a agricultura familiar emprega, em média, 3 a 4 pessoas, isto significa criar 3 a 4 milhões de novos empregos diretos, quase a metade da meta defendida por Lula na Campanha eleitoral.

Embora uma política de conversão da agricultura familiar para a agroecologia possa levar mais do que 4 anos para ter seu alcance máximo, o resgate da dívida social com o campo terá efeitos imediatos na renda e no emprego nas zonas rurais. Investimentos em infra-estruturas de água potável, em habitação, em saneamento, em eletrificação, etc. podem ser executados de forma inovadora, mobilizando a participação dos rurais através de vários tipos de organização, associativas, religiosas, sindicais, etc.

Experiências de ONGs com autoconstruções utilizando tecnologias baratas e de alta eficiência mostram o caminho a seguir se apoiadas com recursos do estado.

Só para dar um exemplo, dotar cada casa de agricultor do Nordeste com uma cisterna custará ao Estado não mais que 2 bilhões de Reais, aí incluídos os custos de construção, de treinamento e mobilização comunitária. O efeito não deve ser minimizado pois a falta de água potável é um dos maiores fatores de incidência de doenças em crianças e adultos.

Distribuir alimentos ou recursos para sua compra pelo Projeto Fome Zero é urgente dada a grave situação que aflige milhões de brasileiros, mas isto pode ser feito de forma a facilitar outros investimentos na zona rural. Já vem sendo feita a combinação da distribuição de cestas de alimentos com a mobilização dos assistidos para frentes de trabalho dirigidas à criação de infra-estruturas nas propriedades, em vez das habituais e inúteis atividades de conservação de estradas.

A sociedade brasileira tem muitas experiências que podem tornar tanto o Projeto Fome Zero como o esforço de criação de empregos mais eficientes e baratos. Depende do atual Governo Lula a mobilização destas soluções, adotando políticas que as favoreçam e consultando as entidades da sociedade civil.

Jean Marc von der Weid – Coordenador do Programa de Políticas públicas da AS-PTA
Revista Eco 21, Ano XIII, Edição 81, Agosto 2003. (www.eco21.com.br)