O racionamento de água na região metropolitana de São Paulo está na iminência de começar. Transtorno semelhante poderá ocorrer também no Rio de Janeiro se os cariocas continuarem a desperdiçar água, por exemplo, usando mangueiras para “varrer” calçadas.
Mais grave ainda, o racionamento já teria começado caso diversas instituições ligadas ao assunto não tivessem chegado a um acordo para diminuir a quantidade de água transferida do Rio Paraíba do Sul para o Rio Guandu, onde se localiza a estação de tratamento operada pela CEDAE.
Há que se celebrar a maturidade das instituições envolvidas na discussão, em particular os comitês da Bacia do Paraíba do Sul e do Guandu, o Operador Nacional do Sistema, o governo do Estado do Rio, através da Superintentência de Rios e Lagoas (SERLA) e da CEDAE, que souberam tomar decisões técnicas visando ao bem comum. No futuro, a experiência acumulada na negociação poderá desencadear ações preventivas em outras cidades que periodicamente apresentam problemas de abastecimento, como Recife e São Paulo.
No caso do Rio de Janeiro, o problema não é falta de água no Rio Guandu e sim excesso de poluição. A vazão bombeada do Rio Paraíba do Sul para o Guandu, atualmente menor do que o normal equivale a mil litros por habitante, a cada dia. Muito mais do que seria necessário para abastecer toda a população (cada um de nós consome, em média, cerca de 200 litros por dia). Isto é, o volume diário retirado do Paraíba é cerca de cinco vezes o que seria estritamente necessário. Enquanto isto, o estoque de água nos reservatórios localizados nas cabeceiras do Paraíba do Sul, em território paulista, está em cerca de 14% do volume máximo (estaria vazio, não fosse a ação preventiva).
Em meados de Novembro esse estoque provavelmente chegará a 8%, que corresponde à pior situação observada no passado. Se as chuvas que normalmente caem em Novembro atrasarem, o racionamento será inevitável. Como chegamos a esta situação?
Devemos considerar, em primeiro lugar, que nos últimos anos tem sido abaixo do normal a chuva nas cabeceiras do Paraíba do Sul, onde é possível guardar água na época de chuvas gordas para uso na época de chuvas magras. Em segundo lugar, como a poluição no Rio Guandu tem aumentado a cada ano, seria necessário retirar cada vez mais água do Rio Paraíba do Sul para manter a mesma concentração de poluentes.
Como, ao contrário, a retirada teve que ser reduzida, a concentração aumentou, fazendo com que a CEDAE gastasse mais com produtos químicos (sulfato, cal e cloro) para limpar a água. Contudo, a situação está tão difícil que a água do Guandu está perto de se tornar intratável. Portanto, poderá ocorrer racionamento não por falta de água, e sim porque ela está excessivamente suja. De onde vem tanta sujeira?
Vem dos esgotos urbanos e industriais não tratados e do lixo carregado pelas chuvas para dentro dos cursos de água das bacias hidrográficas do Paraíba do Sul e do Guandu. A situação é particularmente crítica na Lagoa do Guandu, vizinha à Estação de Tratamento de Água operada pela CEDAE, onde ocorre grande proliferação de algas. Nesta lagoa desembocam os rios Dos Poços, Queimados e Ipiranga, que atravessam os municípios de Nova Iguaçu, Queimados e Japeri, carreando esgoto in natura e lixo, produzidos por 182 mil habitantes.
Desde o final da década de 70 discute-se uma “solução emergencial” para o problema, que seria uma obra de engenharia para deslocar o desemboque dos rios Dos Poços, Queimados e Ipiranga para jusante (rio abaixo) da Estação de Tratamento. Algumas alternativas para o projeto de desvio estão descritas no relatório preparado pela COPPE-UFRJ em 2000, intitulado Estudo de Alternativas para Melhoria da Qualidade da Água a Montante da ETA Guandu. Uma destas alternativas foi detalhada pela CEDAE e, segundo seu presidente, o projeto básico está praticamente concluído. Está previsto um desvio de 4,5m3/s com custo estimado em R$ 12,5 milhões. No orçamento da ANA – Agência Nacional de Águas para 2003 existe uma dotação de R$ 10 milhões que poderia ser utilizada para esta finalidade, desde que os governos federal e estadual cheguem a um acordo sobre a urgência desta iniciativa.
Esse possível entendimento em torno da implementação da solução emergencial enfrentará, além das dificuldades administrativas e políticas de praxe, a razoável objeção daqueles que preferem partir logo para a solução definitiva, a qual seria a coleta e o tratamento do esgoto produzido pelos 182 mil habitantes das bacias hidrográficas dos rios Dos Poços, Queimados e Ipiranga. Trata-se de um investimento da ordem de R$ 36 milhões, que não foi feito devido à persistente crise do setor de saneamento. Tipicamente, as empresas só conseguem receber pagamento por cerca 40% da água que tratam. Os outros 60% se esvaem pelos furos das tubulações com escassa manutenção, nos roubos de água através de “gatos” e nas contas não pagas. O resultado é arrecadação insuficiente para contratar equipes e fazer investimentos que melhorem a operação do sistema já existente e que permitam sua expansão.
Nas últimas décadas, expressivos subsídios foram carreados para as companhias públicas de saneamento. Entretanto, a maior parte dos subsídios serviu para alegrar empreiteiros, diminuir o custo do serviço para os mais ricos, compensar a ineficiência operativa e dar vantagens aos empregados. A lição é que a canalização de subsídios para empresas sob controle público não resultou em eqüidade social. Teria sido preferível que os subsídios fossem condicionados à efetiva prestação de serviços em benefício daqueles que não conseguem pagar o correspondente custo ou da comunidade como um todo, principalmente para coleta e tratamento de esgotos. Isso resultaria em maior eficácia e transparência.
Jerson Kelman – Diretor-Presidente da Agência Nacional de Águas
Fonte: Revista Eco 21, Ano XIII, Novembro 2003. (www.eco21.com.br)