País que conta com a maior reserva de água doce do Planeta – algo em torno de 12% do volume mundial – é surpreendente que o Brasil ainda ostente, ao lado dos sem-terra, milhões de pessoas sem-água. A muitos negamos água por ser o recurso literalmente escasso (sertão nordestino), conseqüência de maléfica combinação de forças da natureza e de intervenções antrópicas que levam ao desmatamento. A outros recusamos água porque, mesmo abundante, não investimos o necessário em saneamento, para levá-la aos consumidores, em condições adequadas de potabilidade.
Quando nos referimos à fome no Brasil, sempre nos perguntamos: por que, com tanta produção agrícola e exportação de grãos? Na mesma linha, é hora de começarmos a questionar a sede em um país com tamanha fartura de água, bem como o estado terminal de alguns dos nossos mais importantes rios, como o São Francisco e o Tietê, para citar apenas dois deles.
A água não só é essencial à sobrevivência dos seres humanos, como, entre nós, gera milhões de empregos, na agricultura irrigada, na produção de energia e em várias outras atividades produtivas. Diante de algo tão precioso, dorsal à vida econômica e social, seria de se esperar que a água estivesse no centro das decisões governamentais, em todas as esferas da administração. Infelizmente, não está!
É certo que se avançou muito nos últimos anos, com a promulgação, em 1997, da Lei de Recursos Hídricos (LRH), e com a criação, em 2000, da Agência Nacional de Águas (ANA). O problema, entretanto, não é legal, mas na implementação da Lei, agravado por um diálogo reticente entre as políticas de recursos hídricos, de saneamento e de meio ambiente.
No campo da aplicação da LRH, há um inegável vazio entre o que pretendeu o legislador e o que de fato vem ocorrendo na maioria das bacias hidrográficas brasileiras.
Na cobrança pelo uso da água e na instalação de Comitês de Bacias, dois dos principais instrumentos da legislação, só agora estamos dando, com muita oposição, os primeiros passos. É incompreensível a resistência do setor produtivo à cobrança por um recurso que não é de domínio privado, mas que, por pertencer à coletividade, deve beneficiar a todos. Tampouco se justifica que expressivas Bacias do território nacional ainda não tenham seus Comitês. Ou que, pior, se instalados, não funcionem adequadamente ou agreguem uma participação da sociedade civil que é apenas protocolar.
Em todos os casos, não é desprezível o risco de captura e cooptação da instância decisória pelos megaconsumidores, o que, a ocorrer, desmoralizará todo o sistema institucional democrático e participativo imaginado pela LRH.
Mas é no diálogo com a legislação ambiental que mais se destacam os desafios de quem pretende salvaguardar os preciosos recursos hídricos brasileiros. Até o leigo sabe que, sem a manutenção da cobertura florestal, os rios definham e, em dado momento, sofrem danos irreversíveis.
A vitalidade dos cursos de água depende, diretamente, do regime legal que resguarda as suas nascentes, matas ciliares e outras áreas de preservação permanente.
Como viabilizar tal proteção dos espaços verdes, genuína maternidade dos rios? São variados os mecanismos, tanto político-jurídicos, como econômicos, atualmente adotados em todo o mundo. Todos, contudo, demandam um marco regulatório claro, estável e implementável.
Ora, é exatamente o que nos falta hoje no Brasil, pois o principal da matéria florestal continua regrado por medida provisória, que, no limbo parlamentar, não tem qualquer data prevista para a sua votação pelo Congresso Nacional.
Certamente, poucos proprietários aceitarão cumprir uma norma que não é definitiva, nem mesmo no nome. À falta de um marco regulatório que lhes assegure segurança para investir, em longo prazo, em medidas de recuperação de suas áreas de preservação permanente e reserva legal, melhor esperar por tempos melhores, continuando tudo como está, inclusive o crescente desmatamento.
No diálogo das agendas, o Conselho Nacional do Meio Ambiental (CONAMA) joga um papel central. Neste momento, são poderosas as pressões para que se flexibilizem as regras de controle da poluição das águas e de proteção contra a erosão de áreas inclinadas, em particular topo e encosta de morros.
Será difícil explicar à nação que padrões obrigatórios para substâncias tóxicas e perigosas, editados em 1986, com o intuito de resguardar a saúde de todos, mais ainda de crianças e idosos, sejam afrouxados em favor dos poluidores. Ou que, em regiões de montanhas e morros, se libere a plantação de eucalipto, abrindo-se mão da recuperação com espécies nativas, que melhor combatem a erosão e asseguram a boa qualidade dos mananciais, em favor do plantio de espécies exóticas para fins industriais.
Como lembrou o Papa João Paulo II, na sua mensagem por ocasião do lançamento oficial da Campanha da Fraternidade de 2004, ‘’a água não é um recurso ilimitado”, sendo, por isso mesmo, dever de todos garantir que ‘’permanecerá, de fato, fonte abundante de vida para todos”.
Na esteira do pensamento do Santo Padre, no Dia Mundial da Água, mais uma vez devemos renovar nosso compromisso com as presentes e futuras gerações. A estas não queremos deixar rios mortos ou enfermos, mas propiciar-lhes o benefício pleno do bem mais precioso que a natureza nos concedeu. Não é pouco, considerando-se a tradição brasileira de desprezo para com a água.
Por José Sarney Filho – Deputado Federal (PV-MA), ex-Ministro do Meio Ambiente
Fonte: Eco 21 – www.eco21.com.br