Enfim, uma BR sem defeitos

Para uma terra onde toda estrada federal cai aos pedaços, a Rodovia das Flores é um modelo de sucesso na administração pública brasileira. Ela caiu aos pedaços mesmo, de uma vez por todas. O que em seu caso não deixa de ser um melhoramento, porque tirou do mapa uma BR que nunca chegou a lugar nenhum e, se chegasse, teria ligado o Rio de Janeiro a Minas Gerais cortando o coração das Agulhas Negras. E nem é preciso dizer o que costuma fazer o asfalto com as melhores paisagens deste país.

Como o governo a deixou inacabada, as chuvas acabaram com ela nas últimas décadas, picotando de ravinas o trecho de Serra da Mantiqueira que se pendura no Vale do Paraíba. Intransitável, tornou-se tão fechada que em poucos anos o mato a engoliu completamente, reduzindo-a a bem menos do que uma trilha na vegetação que tapa o chão e barra o caminho com uma trança de bambus e cipós. E, com esses retoques finais, tornou-se uma espécie de tesouro enterrado no Parque Nacional do Itatiaia.

Mesmo para quem a conheceu em outros tempos, quando era possível percorrê-la até de carro, desde que o dono e a suspensão fossem valentes, ela parece mais inteira que nunca no pedaço que a floresta recuperou. Sobretudo agora, que entrou nos planos de Leo Nascimento, o gerente do Parque, reabri-la como se deve – ou seja, sem estragar o que a interdição consertou. “Quero transformá-la numa trilha reservada a visitantes que possam tirar o melhor proveito dela tal como está hoje. Grupos de observadores de pássaros, por exemplo”, diz ele.

Pelo projeto, eles ganhariam para começo de conversa oito quilômetros de picada. É a parte da antiga estrada que sai da ponte do Maromba, ponto final dos automóveis na sede do Parque, e leva ao Lamego, um abrigo de alvenaria que resistiu bravamente aos anos de abandono no meio do mato. Com uma faxina em regra e uma extensa reforma hidráulica, que Nascimento avalia em 120 mil reais, ele estaria pronto para voltar a receber hóspedes – gente que se contente com beliche sem roupa de cama, mas não abra mão do luxo de ter um filé exclusivo de mata primária servido todo dia na porta de casa.

qq

O Lamego é herança de uma farta estrutura de apoio à pesquisa que, graças ao padrão de obras públicas vigente no Estado Novo, já foi muito extensa em Itatiaia. A rede de instalações se arruinou nas décadas de aperto, em que o Parque não tinha dinheiro para nada, exceto para gastar em bobagens, como a construção de churrasqueiras para quem não tem mais o que fazer na beira de um rio cristalino ou assustadoras escadas de concreto para democratizar o banho de cachoeira.

Há três anos, Nascimento está restaurando passo a passo os refúgios. Hoje o Parque tem três casas de hóspedes só para pesquisadores e um refúgio de alta montanha para 38 pessoas. O resultado é uma safra de teses sobre a geologia, a fauna e a flora de Itatiaia como não se colhia em seus 30 mil ha desde o fim dos anos 40. Mais de 50 projetos de pesquisa esquadrinham o Parque neste momento. E, em janeiro, os boletins do PNI, interrompidos em 1949, voltaram a publicar trabalhos científicos sobre a região.

Nos trinta e tantos quilômetros que o mato recapeou existem, além do Lamego, mais dois refúgios perdidos no Parque. Do Massena, bela tapera de pedra plantada no planalto das Agulhas Negras, só a sala da lareira ficou de pé, para atestar o tamanho das ambições arquitetônicas que inspiraram sua construção.

Perto dele, na montanha coberta pelos campos de altitude, ficam as sobras de uma casa onde, até meados do século passado, moravam duas irmãs, mantendo sozinhas naquele fim de mundo um posto de observação meteorológica.

Elas costumavam se queixar das onças que devastavam os burros de sua tropa de abastecimento.

Na vizinhança fica a torre de televisão que inaugurou em 1956 as transmissões de imagens entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Está inteira. Mas os dois apartamentos que mantinham lá em cima os operadores foram desertados na década de 90, depois que a estrada desandou irremediavelmente. Abaixo, mas ainda a quase dois mil metros de altitude, está o que restou do Macieiras, um chalé alpino quase centenário.

O Parque Nacional do Itatiaia já o encontrou ali, quando foi criado em 1937. Vinha de um programa do Ministério da Agricultura para estimular o cultivo de frutas européias, uvas inclusive, no alto da Mantiqueira, só porque o País era incapaz de imaginar algo melhor para fazer com aquela Serra.

Mas o projeto que indiscutivelmente deu certo em Itatiaia foi devolvê-la à natureza, uma idéia radical que só pegou com muita relutância.

O Macieiras já foi o mais exótico dos abrigos do Parque, um pomar de maçãs e pêras plantado no meio da floresta. Está reduzido a poucas paredes de madeira descascada e meio telhado de zinco ainda capaz de resistir a tempestades torrenciais, típicas do lugar. Sobrevive entre velhos ciprestes que a mata vai aos poucos engolindo.

A maioria de suas portas foi arrancada das dobradiças para servir de estrado a campistas. O vaso sanitário está de sentinela na varanda esburacada. Não há uma tábua onde alguém não tenha gravado o memorial de sua estadia. Fora, os canteiros estão revolvidos por varas de queixadas. Em suma, é o lugar perfeito para quem gosta de lugares perfeitos e pode um dia ser reincorporado aos roteiros de Itatiaia, se forem reabertos os 12 quilômetros de picada entre o Lamego e o Macieiras.

Esse, pelo menos, é o projeto do gerente Leo Nascimento que, como qualquer iniciativa nascida numa unidade de conservação, para vingar precisa que suas raízes peguem fora dos limites do Parque nacional. Em Brasília, por exemplo. Mesmo quando se trata de transformar em patrimônio público o que foi conquistado por obra e graça da decadência. A Rodovia das Flores é exemplo de desperdício cravejado de velharias arruinadas. Mas a mata que tomou seu lugar é uma novidade que está pedindo para ser devidamente administrada.

Marcos Sá Corrêa
Fonte: Revista Eco 21, Ano XIII, Edição 76, Março 2003. (www.eco21.com.br)