Desenvolvimento sustentável e áreas protegidas na Amazônia

O desenvolvimento sustentável surgiu, no final da década de 80, como um novo paradigma para nortear as políticas de longo prazo de comunidades, municípios, estados, países e do Planeta como um todo. Em poucas palavras, significa melhorar a qualidade de vida dos que vivem hoje, sem prejudicar as próximas gerações que nos sucederão. Significa considerar não apenas as dimensões econômicas e sociais do desenvolvimento. Implica na incorporação de objetivos ecológicos como a conservação dos recursos hídricos, a atenuação das mudanças do clima, a conservação das florestas e da biodiversidade.

Sem isso não haverá um futuro promissor para todos, ricos ou pobres.

Traduzir o ideário do desenvolvimento sustentável em ações práticas e coerentes não é tarefa fácil. Significa, em muitos casos, uma mudança drástica no nosso estilo de desenvolvimento. Tomemos o caso das florestas. Nos últimos 500 anos, as florestas brasileiras vêm sendo tratadas como um garimpo estorvador. Como garimpeiros, saqueamos as florestas das suas madeiras nobres, palmitos e orquídeas, para depois atearmos fogo no resto. Como desbravadores, vemos o “mato” como sinônimo de atraso, um estorvo no caminho do progresso a ser materializado na forma de pastos e plantações. Na Mata Atlântica o sucesso foi quase completo: conseguimos saquear e remover mais de 90% desse estorvo.

Na Amazônia estamos fazendo o mesmo. Substituindo indiscriminadamente as florestas por pastos e plantações. Isso é sustentável? Absolutamente não! Ao desmatarmos, destruímos nossos rios, ficamos sem peixes e terminamos com racionamento de água e energia hidroelétrica.

Contribuímos para a mudança do clima, como resultado da fumaça que cobre os nossos céus e se abriga na atmosfera. Além disso, deixamos de produzir madeiras, palmitos, orquídeas etc. Muitas espécies são perdidas sem ao menos serem fotografadas por curiosos ou descritas por pesquisadores.

Para agravar o quadro, tornamos impossível a permanência da população rural no interior, que migra rumo às cidades, compondo um quadro desolador de miséria e violência em nossas capitais. Ainda há tempo para que a Amazônia não repita a história da Mata Atlântica. Existem, felizmente, alternativas. O ponto de partida é mudar os pressupostos e orientações das políticas públicas e o comportamento e os valores de cada um de nós. O desenvolvimento pode, sim, ser feito com a manutenção das florestas. Entretanto, isso não deverá ser resultado do altruísmo dos indígenas, extrativistas, colonos, fazendeiros e empresários. Necessitamos de políticas públicas capazes de mudar a lógica econômica da fronteira do desmatamento.

A equação é simples. A manutenção das florestas deve ser economicamente mais rentável do que os benefícios do garimpo florestal e da agropecuária. Para isso o produtor rural tem que obter maiores rendimentos dos produtos florestais madeireiros e não madeireiros e dos serviços ambientais prestados por suas florestas (conservação dos rios, biodiversidade, clima etc). O Estado do Amazonas está determinado a implementar uma política de desenvolvimento sustentável voltada para a conservação das florestas e a melhoria da qualidade de vida das populações rurais, com especial atenção para os segmentos extremamente empobrecidos.

É inadmissível que indígenas, ribeirinhos e colonos, moradores de ecossistemas riquíssimos, sejam miseráveis e dependam de políticas assistencialistas. É também inadmissível que essas populações sejam forçadas a desmatar, na busca de melhorar o seu bem estar.

Para enfrentar este desafio, estamos fazendo simplesmente o óbvio. Infelizmente, demoramos mais de 500 anos para nos dar conta disso. Promover a regularização fundiária daqueles que não possuem título da terra. Fornecer assistência técnica para o manejo florestal – praticamente inexistente em todo o Brasil. Implementar florestas públicas de produção. Criar linhas de crédito para pequenos e médios empreendedores florestais.

Estender os benefícios fiscais e tributários da indústria convencional para os empresários florestais. Gerar energia elétrica limpa, a partir de resíduos florestais. Utilizar as frutas da floresta, tais como açaí, castanha, camu-camu etc., na merenda escolar.

Utilizar as plantas medicinais nos programas de saúde pública. Apoiar a agricultura familiar com sistemas agroflorestais. Manejar os recursos pesqueiros e promover a piscicultura. Treinar e profissionalizar os trabalhadores florestais. Desenvolver a base científica e tecnológica para a modernização de atividades florestais seculares. E muito mais.

Esse desafio só será possível se houver uma ampla parceria de toda a sociedade brasileira. Precisamos aumentar o consumo de produtos florestais madeireiros e não madeireiros da Amazônia, valorizando os que possuem Selo Verde ou orgânico. Isso pode ser feito individualmente por consumidores ou através da política de compra de empresas e governos. Precisamos desenvolver mecanismos para o pagamento pelos serviços ambientais das florestas ao produtor rural. Menores impostos, crédito mais barato, reconhecimento da propriedade intelectual dos povos indígenas e populações tradicionais. Isso deve ser feito com políticas internacionais, nacionais, estaduais e municipais coerentes com o desenvolvimento sustentável.

Necessitamos de um engajamento vibrante de nossas universidades e instituições de pesquisa: sobre isso devem se debruçar nossos melhores cérebros. Precisamos atrair os mais competentes empresários e investidores privados para os negócios sustentáveis. Necessitamos de novas e mais amplas alianças, inclusive com governos, consumidores e empresas de países seriamente comprometidos com a sustentabilidade. Necessitamos do apoio das ONGs para mobilizar comunidades e consumidores. Precisamos de uma ação coordenada e estratégica com nossos países vizinhos – afinal temos mais de 1/3 das florestas tropicais do Planeta.

Conservar a Amazônia é uma tarefa urgente. É melhor que façamos nós mesmos antes que nos julguem incapazes e questionem nossa soberania.

A Amazônia tem um significado especial para o mundo e, em especial, para nós brasileiros. A Amazônia representa nosso imaginário da natureza primitiva, com suas espécies singulares e seus povos indígenas e populações tradicionais com características únicas e pouco afetados pela sociedade de consumo. Representa, também, nossa esperança de sustentabilidade para um Planeta combalido pelo uso não sustentável dos recursos. Uso este que nos ameaça com mudanças climáticas de conseqüências imprevisíveis.

Como proteger a Amazônia de um futuro devastador? A história da Mata Atlântica nos produz calafrios: mais de 93% de desmatamento. O quadro atual do sul da Amazônia fortalece nossos temores: são cerca de 1.800 focos de calor registrados no mês de Dezembro de 2003, no Amazonas. Restam agora algumas áreas estratégicas, que podem servir como bastão da resistência contra tudo isso. O Estado do Amazonas, com seus 157 milhões de hectares, 1/3 da Amazônia brasileira, 66 etnias indígenas e 2% de desmatamento é um ícone dessa resistência. Qual deve ser a estratégia para um estado com tamanha importância?

A estratégia para proteger o Amazonas da avassaladora e descontrolada expansão da fronteira agrícola tem diversos componentes, que fazem parte do Programa Zona Franca Verde do Governo Eduardo Braga, entre eles as áreas protegidas.

Áreas protegidas têm o seu uso determinado por uma legislação específica. Estão divididas em duas categorias: as de uso sustentável (reservas extrativistas, terras indígenas, reservas de desenvolvimento sustentável e outras do gênero) e as de proteção integral (parques nacionais e reservas biológicas). Esse é um novo conceito de áreas protegidas, que engloba Unidades de Conservação e Terras Indígenas, o que nos parece mais apropriado à realidade brasileira.

O Estado do Amazonas possui a maior rede de áreas protegidas de florestas tropicais do mundo, à frente do Congo e da Indonésia; que ocupam respectivamente o segundo e terceiro lugares. As áreas protegidas do Amazonas equivalem a 49% do território do Estado, englobando 76,7 milhões de hectares. Deste número em hectares das áreas protegidas, 45,9 milhões ha são terras indígenas, 30,7 milhões ha são áreas protegidas em unidades federais, estaduais e municipais com 8,2 milhões ha de áreas de sobreposição de áreas protegidas em terras indígenas e 1,7 milhões de há de sobreposição entre as diversas áreas de conservação.

Em 2003, o Governo do Estado aumentou em 50% este número e a área das unidades de conservação estaduais, com a criação de 7 novas áreas, incluindo a maior reserva de desenvolvimento sustentável do mundo: a do Cujubim, com 2,4 milhões de hectares, equivalente à metade da Costa Rica.

Foram criados ainda o Parque Estadual Sumaúma (51 hectares), a Floresta Estadual de Maués (438.440 hectares), a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçú-Purus (1.008.167 hectares) e a Reserva Extrativista do Catuá-Ipixuna (216.874 hectares), totalizando 4,2 milhões de ha. Há a previsão de criação de diversas outras florestas estaduais e RDS em 2004.

Criar novas áreas protegidas é importante: significa que uma porção maior do nosso território está mais protegida do que antes. Entretanto, não é suficiente. É necessário fazer com que as áreas protegidas saiam do papel e sejam bem administradas pelo poder público, para não serem saqueadas à luz do dia. Isso requer recursos expressivos. Como os recursos são escassos em países com dívidas sociais enormes como o Brasil, precisamos de criatividade, profissionalismo e mudanças paradigmáticas.

No recente Congresso Mundial de Parques, na África do Sul, o Presidente Nelson Mandela cunhou uma frase histórica: “precisamos proteger a natureza não das pessoas e sim para as pessoas”. É impossível pensar na conservação de áreas protegidas, em longo prazo, se estas pessoas estiverem ilhadas num oceano de pobreza e miséria. É fundamental que as pessoas que vivem nos lugares mais conservados do Planeta sejam beneficiadas pelos serviços que estão prestando a todos nós ao conservarem as plantas, os animais, a água e o nosso clima. Aí está uma mudança paradigmática profunda: ao invés de expulsarmos as pessoas que cuidam desses patrimônios naturais, vamos promover o envolvimento sustentável dessas comunidades com seus ecossistemas. Isso significa reforçar os laços culturais e criar relações econômicas sustentáveis, capazes de compensar de forma justa os produtos e os serviços ambientais dessas áreas.

Produtos de origem sustentável e certificados com selo de origem de áreas protegidas deveriam ter isenção total de impostos em todo o mundo, assegurados pela Organização Mundial do Comércio e outras instâncias de formulação de políticas tarifárias internacionais e nacionais. Campanhas publicitárias deveriam ser elaboradas para esses produtos. O ecoturismo pode ser uma importante fonte de recursos para a gestão de áreas protegidas, desde que devidamente certificado quanto às suas práticas e impactos socioambientais. Os serviços ambientais deveriam, gradualmente, substituir as doações por pagamentos éticos.

A conservação do clima através do seqüestro de carbono, a conservação da biodiversidade e a conservação dos recursos hídricos precisam ser valoradas financeiramente e se converter em fluxos financeiros da ordem de centenas de milhões de dólares anuais na Amazônia. Só assim poderemos conciliar proteção ambiental com dignidade para os povos indígenas, as populações tradicionais e demais comunidades que vivem dentro e nas imediações das áreas protegidas.

Felizmente, existem exemplos bem sucedidos. Um caso de destaque é a Reserva Estadual de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, no Amazonas, que por meio da parceria com uma organização não governamental – a Sociedade Civil Mamirauá – o manejo do pirarucu (maior peixe de escama de água doce do mundo), por exemplo, conseguiu diminuir a pesca predatória e, ao mesmo tempo, aumentar a renda dos ribeirinhos em até 333,3%, se compararmos a evolução de renda dos pescadores de Mamirauá nos últimos quatro anos. Em 2000, a renda líquida média, por pescador, durante um mês era de R$ 320. Hoje, o número de pescadores saltou de 42 para 234 e a renda líquida média atual de cada pescador é R$ 1 mil. O envolvimento de prefeituras municipais, como a de Fonte Boa, abriu espaço para políticas públicas em escala municipal direcionadas para a sustentabilidade, até então impensáveis em regiões como o Alto Solimões. Ainda há muito por fazer nessa e em outras áreas, não apenas no Amazonas e no Brasil, mas em todos os países subdesenvolvidos.

Necessitamos políticas públicas sérias, profissionais e de longo prazo, acima de disputas partidárias ou interesses individualistas. Isso requer o fortalecimento de instituições públicas, organizações não governamentais, movimentos sociais, instituições de pesquisa e empresas privadas com responsabilidade social. Necessitamos de uma ampla rede de parcerias, envolvendo toda a sociedade brasileira e planetária em torno do desafio de ampliar e consolidar nossas áreas protegidas e, com isso, salvar o futuro da Amazônia, do qual depende o futuro de todos nós.

Virgílio M. Viana – Ph.D. pela Universidade de Harvard e Secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas
Fonte: Revista Eco 21, Ano XIV, Edição 86, Janeiro 2004. (www.eco21.com.br)