1.A importância da paisagem
Quando se pensa numa cidade, pensa-se sempre em funcionalidade. As vias públicas, os edifícios, e todos os equipamentos que compõem o cenário urbano devem ser concebidos para o eficiente exercício de funções como moradia, trabalho, circulação e lazer. Embora a preocupação com a funcionalidade seja a mais evidente, é certo que não deve ser a única.
Não é nosso objetivo discorrer sobre o fascínio que a beleza e a formosura das coisas exercem sobre o ser humano. Interessa-nos, apenas, destacar que o culto ao belo faz parte da cultura do homem. Não é por outra razão que cerca-se de ornamentos, valoriza a harmonia da forma e da cor dos objetos e suas qualidades plásticas e decorativas.
Pode-se falar, assim, numafunção estética [3] que as coisas em geral devem possuir a fim de criar uma sensação visualmente agradável às pessoas. Isso vale também para as paisagens que cercam nosso dia-a-dia, sobretudo nas cidades.
Os elementos que compõem o cenário urbano devem estar ordenados de forma harmônica, que possa ser apreciada. A função estética da paisagem urbana deve ser levada em conta pela Administração em toda e qualquer intervenção urbanística e sua proteção e garantia devem ser disciplinadas em lei. É evidente que o julgamento de padrões estéticos será sempre subjetivo, e a imposição de um padrão oficial de estética seria autoritária. Algum grau de consenso, no entanto, pode haver em relação à beleza de elementos naturais em geral (vegetação, céu, lagos, rios e praias) e até de elementos artificiais (monumentos, prédios históricos com características marcantes de determinado estilo e fachadas visualmente desobstruídas).
Aspectos culturais, ecológicos, ambientais e sociais devem também ser considerados, além do aspecto plástico, quando se pensa em paisagem. Até mesmo como recurso que favorece a atividade econômica a paisagem deve ser encarada. O potencial turístico de cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Ouro Preto está diretamente ligado à formosura de suas paisagens. A indústria do turismo, com todos seus desdobramentos econômicos, nessas e em outras cidades, depende da conservação e melhoria de seus belos panoramas.
A importância de protege-la levou o Conselho Europeu a discutir a elaboração de uma Convenção Européia de Paisagem. No preâmbulo do Projeto, estão as seguintes justificativas:
- “… landscape, has an important public-interest role in the cultural, ecological, environmental and social fields and constitutes a resource favourable to economic activity and whose protection, manegement and planning can contribute to job creation;
- “… landscape contributes to the formation of local cultures and that it is a basic component of the European natural and cultural heritage, contributing to human well-being and consolidation of the European identity;
- “… landscape is an important part of the quality of life for people everywhere: in urban areas and in the countryside; in degraded areas as well as in areas of high quality; in areas recognised as outstanding as well as everyday areas.” [4]
2. Paisagismo como interesse ambiental e a legislação brasileira
A idéia de meio ambiente está geralmente relacionada aos recursos naturais. O discurso de ambientalistas volta-se quase sempre à necessidade de preservação de mananciais e florestas, rios e oceanos, atmosfera e até de espécies animais ameaçadas de extinção. O conceito de meio ambiente excepcionalmente está associado ao espaço urbano. [5]
A tutela ambiental no entanto não pode desprezar os interesses urbanísticos, que são aqueles que garantem a qualidade de vida nas cidades, habitat de cerca de dois terços da população brasileira. [6]
O Direito Ambiental jamais dedicou à defesa da paisagem uma atenção destacada. [7] A tutela do meio ambiente, todavia, compreende sem dúvida a proteção de interesses urbanísticos e estéticos, e por conseqüência, da paisagem urbana.
A Lei Federal n° 6.938/81, que “dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação” define meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3°, inc. I) e poluição como “a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que, direta ou indiretamente afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente” (art. 3°, inc. III, letra d, grifamos).
Podemos assim destacar a paisagem como valor ambiental [8] e, particularmente, a paisagem urbana. Podemos apontar sua importância dentre os temas urbanísticos e ambientais de relevo, sob a premissa de que a manutenção de padrões estéticos no cenário urbano encerra inegável interesse difuso por relacionar-se diretamente com a qualidade de vida e com o bem-estar da população.
É de toda a população, portanto, o interesse de morar em uma cidade ornamentada, plasticamente agradável e, por que não dizer, bela. José Afonso da Silva afirma que a paisagem urbana “é a roupagem com que as cidades se apresentam a seus habitantes e visitantes”. Na sua opinião “a boa aparência das cidades surte efeitos psicológicos importantes sobre a população, equilibrando, pela visão agradável e sugestiva de conjuntos e elementos harmoniosos, a carga neurótica que a vida citadina despeja sobre as pessoas que nela hão de viver, conviver e sobreviver”. [9]
Rodolfo de Camargo Mancuso é explicito ao afirmar: “não temos dúvida de que há um interesse difuso (= esparso pela sociedade como um todo) a que seja preservada a estética urbana”. [10]
A amplitude dos interesses relacionados à paisagem fica clara nas seguintes palavras de Adrian Phillips:
“Landscapes also have important economic values, particularly those which, because of their quality and variety, are the foundations for successful tourism and recreation industries upon which many jobs and local incomes depend; or, looked at from the user’s point of view, such landscapes provide cultural, recreational and aesthetic experiences for people who have to spend most of their lives within the much more controlled environments of our cities. Indeed the role of landscapes as a setting for enhancing the physical health and mental well-being of urban populations is hugely important. Landscapes are also significant for the cultural elements which they contain, such as ancient field systems or venacular farm buildings. And of course they often have great cultural significance of another kind through their associations with literature, paiting and music.” [11]
Como o Direito Brasileiro trata da proteção da paisagem? Que instrumentos existem para combater a poluição visual?
A Constituição Federal coloca a “garantia do bem-estar de seus habitantes” como objetivo da política de desenvolvimento urbano (art. 182, caput), preocupação que se renova na Constituição Estadual, cujo texto dedica ainda atenção à “preservação, proteção e recuperação do meio ambiente urbano” (art. 180, inc. III).
Diversos são os dispositivos infra-constitucionais que tratam do patrimônio estético.
O Decreto-lei Federal n° 25/37, que organiza a Proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em seu art. 18, exige prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para colocação de anúncios ou cartazes na vizinhança da coisa tombada.
O art. 3°, inc. III, letra d, da Lei Federal n° 6.938/81, é expresso ao associar qualidade ambiental com as condições estéticas do meio ambiente, na própria definição de poluição.
O Código Eleitoral determina que “não será tolerada propaganda que prejudique a higiene e a estética urbana ou contravenha a posturas municipais ou a outra qualquer restrição de direito” (art. 243, inc. VIII).
Já o Decreto-lei nº 3.365/41, que dispõe sobre desapropriações por utilidade pública, prevê em seu art. 5º: “Consideram-se casos de utilidade pública: … i) a abertura, conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos; a execução de planos de urbanização; o parcelamento do solo, com ou sem edificação, para sua melhor utilização econômica, higiênica ou estética; a construção ou ampliação de distritos industriais”.
A Lei Federal n° 4.717/65, que regula a ação popular, considera patrimônio público “os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico” (art. 1º, § 1º).
A Lei Federal n° 9.008/95 cria o Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (CFDD), atribuindo-lhe competência para “promover atividades e eventos que contribuam para a difusão da cultura, da proteção ao meio ambiente, do consumidor, da livre concorrência, do patrimônio histórico, artístico, estético, turístico, paisagístico e de outros interesses difusos e coletivos”(art. 3º, inc. VI).
Preocupação com a estética encontramos ainda na Lei Federal n° 7.347/85. Em seu art. 1°, inc. III, mencionam-se “bens e direitos de valor estético” como objeto de proteção judicial através da ação civil pública. Menção expressa sobre essa tutela está também na Lei Orgânica do Ministério Público, que refere-se a “bens e direitos de valor estético e paisagístico” (art. 25, inc. IV, letra a).
O Decreto-lei Estadual n° 13.626, de 1943, do Estado de São Paulo, já referia-se ao”efeito estético dos anúncios” ao disciplinar sua colocação junto às rodovias estaduais. [12]
A Lei Orgânica do Município de São Paulo manifesta igualmente o dever do Município promover a “preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente” (arts. 148, inc. IV e art. 180). O mesmo Diploma proclama que “a política urbana do Município terá por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, propiciar a realização da função social da propriedade e garantir o bem-estar de seus habitantes, procurando assegurar a segurança e a proteção do patrimônio paisagístico arquitetônico e a qualidade estética e referencial da paisagem natural e agregada pela ação humana” (art. 148, incs. III e V, grifamos).
O Plano Diretor em vigor em São Paulo é expresso ao indicar como um dos objetivos gerais da estrutura urbana a melhoria dos padrões de qualidade através do aperfeiçoamento do controle sobre os níveis de poluição visual (art. 11, inc. III, letra b, da Lei Municipal n° 10.676/88).
A partir da compreensão sistemática desses dispositivos é possível afirmar com certeza que a estética e a paisagem são valores que mereceram a atenção do ordenamento jurídico, sendo portanto objeto de proteção legal. Em contrapartida, é preciso identificar a existência da poluição visual como o comprometimento de valores ambientais, da mesma forma como outras formas de poluição (do ar, dos recursos hídricos, sonora, etc.) [13] , através da interferência esteticamente prejudicial ao panorama natural ou urbano.
3. Necessidade de controle da poluição visual
Como garantir a preservação estética de uma cidade? Como proteger o paisagismo urbano?
Inúmeros componentes da paisagem urbana comprometem sua beleza. A má conservação de fachadas de imóveis, a falta de arborização e de ajardinamento, a “pichação” de prédios e monumentos, o excesso de concreto, antenas, fios e postes de distribuição de energia e cabos telefônicos são alguns exemplos. Interessa-nos, particularmente, apontar a poluição causada pela inserção abusiva de cartazes no cenário da cidade. [14]
Vivemos num sistema capitalista que se caracteriza pela livre concorrência. Empresas produtoras de bens e serviços e estabelecimentos comerciais disputam avidamente o mercado consumidor. Nessa disputa por mercado, a publicidade exerce um papel de muita relevância. Diz antigo ditado que “a propaganda é a alma do negócio”. É do interesse de toda empresa propagar sua marca, logotipo ou mensagem para fixá-los na mente do consumidor. Dentre as diversas modalidades de publicidade, temos aquela veiculada pela exibição de cartazes [15] . É certo que “sempre que um produto ou serviço necessite ser anunciado com uma grande dose de impacto, o outdoor é sempre um dos meios mais lembrados. Sendo um meio que participa diretamente da paisagem urbana (e conseqüentemente no cotidiano das pessoas), e com as proporções ampliadas que possui, o outdoor está sempre diretamente relacionado com o conceito de impacto da comunicação”. [16] O espaço publicitário em locais de grande visibilidade é vendido no mercado e possui valor econômico. Os estabelecimentos comerciais, no afã de chamar a atenção de potenciais clientes, instalam letreiros indicativos em suas fachadas, que muitas vezes, por suas dimensões e altura de instalação, parecem desempenhar também função publicitária, extrapolando a mera indicação do estabelecimento.
Existem empresas que se dedicam à venda desses espaços aos interessados, que despendem boa soma de dinheiro para ter exposta ao público sua marca, logotipo ou mensagem publicitária. A tecnologia tornou-se aliada dos anunciantes. Os cartazes tornaram-se sofisticados, iluminados, instalados em locais altos, de grande visibilidade. Telões eletrônicos permitem a exibição de imagens em movimento. Inovações como anúncios veiculados por helicópteros, aviões e balões surgem nos céus.
É evidente que o excesso de cartazes e outros elementos de comunicação visual interfere nos padrões estéticos de uma cidade. A falta de um controle eficaz permite que a profusão de letras e imagens acabe por dominar a cena urbana, escondendo árvores e fachadas e parcialmente o próprio céu, constituindo um fator de stress.
Alguns equipamentos urbanos comprometem a paisagem mas são necessários. É o caso dos semáforos e das placas de sinalização de trânsito. Existe uma justificativa razoável para sua presença. São uma interferência inevitável na paisagem urbana.
Com relação aos cartazes publicitários e até indicativos [17] , no entanto, nenhuma justificativa válida pode ser apontada para sua presença abusiva no cenário da cidade.
Sobre o impacto dos anúncios, a própria Central de Outdoor (entidade que congrega empresas que exploram a publicidade externa) reconhece: “Praticamente, o outdoor é uma mídia compulsória. Ele está nas ruas, praças e avenidas, aberta a toda população. Não necessita ser comprada, nem ligada, nem folheada. Não se cobra ingresso para vê-la. O consumidor é indefeso a uma mensagem veiculada em outdoor.” E lança as perguntas: “Como calcular quantas pessoas por dia estão vendo uma mensagem em outdoor? Como calcular quantas vezes um consumidor foi impactado pelo mesmo cartaz, num determinado período? ” [18] Uma empresa de comunicação visual anuncia em folheto promocional “algumas das vantagens da mídia externa, em topo de prédios e empresas: possibilita ao anunciante ter um ponto exclusivo, que se torna referência marcante da paisagem urbana; mídia exposta 24 horas aos olhos do consumidor, impactando o público alvo diversas vezes ao dia”. [19]
É preciso que se restabeleça o direito do cidadão à fruição da paisagem urbana, sem qualquer interferência ou mensagem, que não as relativas à orientação e ao bem comum. É impiedoso submeter as pessoas ao estímulo constante de consumo ou de ações a que elas, na maioria dos casos, não têm condição de corresponder. Aqui, ao contrário do que ocorre com outros meios de comunicação, o receptor da mensagem não tem condição de suprimi-la, e não anui tacitamente ligando um aparelho ou folheando uma revista ou jornal. [20]
Não se pode pregar a eliminação total dos anúncios externos nas cidades, embora tal solução radical viesse a agradar aos olhos mais sensíveis. É preciso aceitar, como diz Gordon Cullen que “a la gente le gusta comprar y vender, enterarse de cosas y comunicar-las a los demás. Es algo que forma parte de nuestra civilización. La publicidad há sido aceptada por todo el mundo como un elemento más de la moderna vida ciudadana”. [21]
A tutela do paisagismo, no entanto, implica na necessária limitação à inserção de cartazes na cidade. Poucos cartazes e de pequenas dimensões: não parece ser possível outra fórmula. [22] Se a proliferação de cartazes é inimiga da estética urbana, a restrição à sua colocação deve ser preocupação prioritária de uma lei que pretenda impedir a poluição visual. [23] Ou será que os munícipes não são nada além de “consumidores”, que devem ser atingidos na condição de “público alvo”?
4. Competência legislativa concorrente
Sem dúvida nenhuma, o Município tem competência para legislar sobre urbanismo e sobre a tutela do meio ambiente urbano que, por serem assuntos de interesse local, estão no âmbito traçado pelo art. 30, inc. I, da Constituição Federal. Normas que controlam a poluição visual podem portanto ser editadas pelo Município.
Essa competência, todavia,não é privativa. A mesma Constituição Federal, ao organizar o Estado brasileiro, cometeu à União e aos Estados competência para “legislar concorrentemente sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição, proteção ao patrimônio paisagístico, responsabilidade por dano ao meio ambiente, a bens e direitos de valor estético e paisagístico” (art. 24, incs. VI, VII e VIII).
O art. 23, ainda da Lei Maior, atribui à União, Estados e Municípios competência comum para “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (inc. VI).
O controle da poluição visual pode ser objeto de lei federal sem que haja qualquer violação na autonomia do Município?
A lição de José Afonso da Silva dirime qualquer dúvida. Reconhece ele que “as normas urbanísticas municipais são as mais características, porque é nos Municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua forma mais concreta e dinâmica”. Ressalva, no entanto, que “há setores urbanísticos em que a competência para atuar é comum à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, como no caso da proteção de obras de valor histórico, artístico e cultural, e dos monumentos, paisagens notáveis e sítios arqueológicos, assim como na proteção ao meio ambiente e combate à poluição (art. 23, III, IV, e VI, e art. 225). Mas nesses setores a Constituição reserva à União a legislação de normas gerais (art. 24, VI, VII e VIII, § 1°) e aos Estados e Distrito Federal, a legislação suplementar (art. 24, I, § 2°). Aqui, sim, a posição dos Municípios é diversa daquela apontada acima em relação às normas urbanísticas em geral, porque, nesses setores, a atuação legislativa municipal é suplementar da legislação federal e estadual, com aplicação do disposto no art. 30, II, e especialmente ao teor específico do inc. IX deste artigo, que declara caber ao Município promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”. [24]
Decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo veio no sentido de que, cuidando-se de matéria ambiental, de competência legislativa concorrente com a União, “Estados e Municípios não podem abrandar exigências contidas em leis federais através de lei local”. [25]
Apenas de modo suplementar, portanto, pode o Município legislar sobre proteção paisagística e sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, a bens e direitos de valor estético e paisagístico.
5. Poder de polícia e responsabilidade civil pela poluição visual
5.1. Legislação municipal
Se, como vimos, a lei garante proteção aos valores estéticos e paisagísticos urbanos, como garantir na prática o efetivo respeito e tais valores? Ou seja, como evitar e combater a poluição visual?
Preliminarmente, é mister procurar na legislação municipal a disciplina da instalação de anúncios. O exercício do poder de polícia em diversos aspectos relativos à instalação de cartazes (segurança da estrutura, segurança para o trânsito, poluição visual, proteção de bens e monumentos, etc.) constitui em princípio matéria de interesse local. Cumpre, portanto, à lei municipal determinar condições para instalação, se necessário através de zoneamento, indicando para cada zona as características dos cartazes (altura, dimensões máximas, iluminação, etc.). O interessado em instalar cartaz externo, portanto, deverá obter sua licença perante a administração municipal. A falta de conformidade com a lei municipal autoriza a presunção da abusividade do cartaz e de seu efeito poluidor.
Duas hipóteses, todavia, merecem menção: a de inexistência de lei municipal sobre a matéria, e a de existência de lei incapaz de impedir a poluição visual. [26]O assunto é relevante porque a imensa maioria dos cartazes está instalada no perímetro urbano dos municípios (na zona rural, em geral concentram-se apenas junto ao leito das rodovias).
Surge para o intérprete a inusitada questão: se a lei municipal for permissiva (como é a lei paulistana vigente), como combater a poluição visual? Ou ainda: mesmo regular perante a lei municipal, pode um anúncio ser considerado poluidor, e portanto abusivo?
À lei, malgrado seustatus na ordem jurídica, não se permitem disparates [27] . Não é o legislador onipotente para editar o texto legal que lhe aprouver. É preciso que a lei esteja em sintonia com suas finalidades, que encontre no ordenamento jurídico e na realidade a que se dirige ampla coerência e efetividade. Se determinada lei, mesmo sem contrariar diretamente a Constituição, afasta-se dos objetivos a que se propõe – é o caso de leis editadas por pressões dos lobbies ou das que se tornam obsoletas com o tempo – pode-se falar em desvio de finalidade. Caio Mário da Silva Pereira afirma que “o princípio geral de direito de que toda e qualquer competência discricionária tem como limite a observância da finalidade que lhe é própria, embora historicamente vinculada à atividade administrativa, também se compadece, a nosso ver, com a legitimidade da ação do legislador”. [28] Paulo Fernando Silveira, por sua vez, proclama que “em face do devido processo legal, há de se rever doutrinariamente o alcance discricionário do Poder Legislativo para formular as leis (normas abstratas de conduta obrigatória).” [29]
É possível falar, portanto, em desvio de poder do legislador quando ele produz lei que não se harmoniza com as diretrizes traçadas pela Constituição e atinge desse modo valores, bens ou interesses protegidos pelo ordenamento jurídico, sistematicamente considerado. No caso da lei paulistana, há dissonância evidente com os objetivos que a mesma lei impôs e com o que proclama o plano diretor.
Paulo Affonso Leme Machado diminui a importância da legislação municipal quando diz que “a estética urbana está protegida pela Lei 7.347/85. As posturas municipais existentes indicarão regras e ajudarão a apontar a necessidade de serem impedidos ou removidos cartazes, anúncios, etc. Inexistentes essas posturas, restará ao julgador colher subsídios noutras fontes para que se possa estabelecer o valor estético urbano a ser observado”. [30] Tanto a ausênciade lei municipal, quanto a existência de uma lei incapaz de coibir a poluição visual (como é o caso da Lei n° 12.115/96 paulistana), remetem o intérprete aos demais dispositivos pertinentes no sistema jurídico no afã de buscar a melhor orientação sobre a tutela do paisagismo. E, tratando-se de matéria de competência legislativa concorrente (vide item 4 acima), aplicável a legislação estadual (quando houver) [31] e a federal.
Não ficamos então exclusivamente nas mãos do legislador municipal. A Lei de Introdução ao Código Civil proclama no art. 4° que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Maria Helena Diniz propõe, diante de antinomia entre normas, “uma solução por meio de interpretação corretiva e eqüitativa do jurista e do aplicador, que, se utilizando dos meios de preenchimento da lacuna (LICC, art. 4°), opta pela norma que, ao ser aplicada, não produzir efeitos contraditórios aos fins e às valorações, pelos quais se modela a ordem jurídica, rechaçando a outra, tendo-a por não escrita (interpretação ab-rogante)”. [32]
Nenhuma lei, é certo, tem existência autônoma e independente; inserem-se todas, sempre, num sistema jurídico. É Carlos Maximiliano quem explica:
“O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos.
“Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço”. [33]
O intérprete deve partir, pois, de uma visão panorâmica e abrangente do sistema jurídico, a fim de buscar o verdadeiro alcance de cada norma. Como vimos acima, vários são os dispositivos legais que revelam, direta ou indiretamente, a preocupação com a tutela do paisagismo. [34]
5.2 Legislação federal
Da legislação federal dois preceitos merecem destaque. Tratam-se de dispositivos de direito material e eficácia jurídica plena que impõem, diretamente, a proibição de abusos e a necessidade de reparação de danos.
O primeiro deles vem do Código de Defesa do Consumidor, que em seu art. 37 diz:
“Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
……………………………………………………
§2° É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.”
Está imposto o dever de respeito a valores ambientais na veiculação de publicidade. [35] Em outras palavras, vale dizer que o fornecedor de produtos e serviços tem direito de divulgar mensagens publicitárias, mas deve fazê-lo sem ofender o meio ambiente que, como vimos, inclui o meio ambiente urbano e suas condições estéticas.
A publicidade possui sempre dois aspectos: a mensagem e o meio. [36] É errado pensar que essa regra disciplina apenas o conteúdo da publicidade, atingindo somente o teor da mensagem (informação veiculada). O respeito a valores ambientais é preconizado de forma abrangente, e onde o legislador não ressalvou, não pode o intérprete ressalvar. Assim, a forma de divulgar a mensagem publicitária (veículo de difusão), independentemente do conteúdo desta (que pode até ser ecológico!), não pode, segundo a norma em estudo, desrespeitar valores ambientais. Suponhamos que determinada empresa instale no Corcovado um enorme cartaz de publicidade institucional com os dizeres “proteja a natureza”. Será uma publicidade abusiva não em razão da mensagem, mas sim devido ao meio.
O art. 67 do Código de Defesa do Consumidor estabelece uma sanção penal (detenção de três meses a um ano e multa) para quem fizer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva. No âmbito cível, o dano pode ser combatido através de ação civil pública, com pedido de remoção de anúncio poluidor e de indenização por lesão a interesse difuso. [37]
A segunda norma a que nos referimos vem da Lei Federal n° 6.938/81, e também impõe regra de direito material e eficácia jurídica plena, geradora de obrigação por ato ilícito ao prever a responsabilidade civil por dano ambiental quando estabelece: “é o poluidor obrigado, independentemente de existência de culpa, a indenizar ou reparar danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal por danos causados ao meio ambiente” (art. 14, § 1°). [38]
A interpretação dos dois dispositivos no contexto do ordenamento jurídico sistematicamente considerado não deixa dúvida: o direito positivo brasileiro não permite a poluição visual. Mas, ao contrário do que faz a legislação municipal (que impõe regras objetivas para a instalação de anúncios, como altura, luminosidade, área máxima do cartaz, locais de instalação, etc., e medidas repressivas e corretivas, como multas, remoção, etc.), essas normas são genéricas, referem-se apenas a degradação da qualidade ambiental e abusividade, expressões que lembram os chamados elementos normativos do tipo, no Direito Penal. [39]
Então, perante a lei federal, quem é o poluidor?
A resposta está no já citado dispositivo da Lei Federal n° 6.938/81. Poluidor é quem causa poluição, ou seja, quem provoca “a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente” (art. 3°, inc. III, letra d).
Na falta de critério objetivo, verificável através de medições métricas, é preciso que o aplicar da lei promova um trabalho de integração para aferir, em cada caso concreto, a eventual ocorrência do abuso. Nesse mister, a cooperação de um expert pode ser valiosa: um especialista em programação visual e paisagem urbana é profissional qualificado para apontar mais apropriadamente as razões de determinado abuso. Embora as aberrações sejam de abusividade flagrante até para o olhar do leigo.
Concluímos para afirmar que nenhuma dúvida pode pairar sobre a responsabilidade civil por dano paisagístico após a leitura sistemática das normas mencionadas. E virá essa responsabilidade da legislação federal quando, a despeito da regularidade perante a norma local (e de eventual emissão da respectiva licença), determinado anúncio for considerado poluidor.
Resta apenas a pergunta: como definir ou identificar um dano estético à paisagem urbana?
Discorrendo sobre dano e indenização, Carlos Alberto Bittar ensina que:
“traduz-se pela determinação, no âmbito jurídico, dos efeitos decorrentes de fatos humanos produtores de lesões a certos interesses alheios protegidos, que ao Direito compete regular, na defesa dos valores maiores da sociedade e da pessoa e, com isso, garantir a fluência natural e pacífica das interações sociais. Daí a integração, no sistema jurídico, de autorização e de proibições de comportamento e, de outro lado, de mecanismos de reação, nas órbitas pública e privada, que permitem a submissão do agente, pessoal ou patrimonialmente, aos reflexos derivados de ações ou de omissões conflitantes com seus mandamentos e lesivas a interesses sociais ou individuais, ou, mesmo, de ambas as naturezas”. [40]
Sobre dano, especificamente, entende-o como “qualquer lesão injusta a componentes do complexo de valores protegidos pelo Direito”. [41]
O Código Civil, disciplinando a responsabilidade civil, determina que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” (art. 159).
A idéia de dano, portanto, vem associada às idéias de prejuízo e de lesão. Quando se trata de paisagismo, é certo que a verificação do dano exige avaliações caso a caso. Com efeito, há que se perquirir, em cada hipótese concreta, se a intervenção no cenário urbano harmoniza-se com a paisagem ao seu redor, ou se, pelo contrário, importa em presença agressiva em conflito com os elementos que compõe o panorama. [42] Tratando-se deanúncios de publicidade é certo que seu “desenvolvimento desordenado na paisagem urbana ocasiona evidentes prejuízos à estética da cidade”. [43]
Fatores como recuo, área de exposição, visibilidade, luminosidade e altura do anúncio certamente são decisivos para aferir sua abusividade (para usar a expressão do Código de Defesa do Consumidor). Da mesma forma, há que se considerar a existência de monumentos, edifícios de valor histórico ou arquitetônico e áreas verdes cuja visibilidade possa ser afetada por anúncios, com comprometimento paisagístico do cenário como um todo. [44]
Constatado o dano estético, a responsabilidade do poluidor é objetiva, pois, como leciona Paulo Affonso Leme Machado,
“a responsabilidade objetiva ambiental significa que quem danificar o meio ambiente tem o dever jurídico de repará-lo. Presente, pois, o binômio dano/reparação. Não se pergunta a razão da degradação para que haja o dever de reparar. Incumbirá ao acusado provar que a degradação era necessária, natural ou impossível de evitar-se. Portanto, é contra o Direito enriquecer-se ou ter lucro à custa do meio ambiente.” [45]
Possível, portanto, a defesa da paisagem através de ação civil pública com fundamento nesses preceitos de direito material. Se a lesão decorrer de ato praticado pelo Poder Público, cabível ainda a ação popular.
Cumpre lembrar, por fim, que a desfiguração de um projeto arquitetônico pela introdução posterior de um elemento de comunicação visual poderá, conforme o caso, trazer reflexos no direito autoral do arquiteto responsável pelo projeto. Diz a Lei Federal n° 5.988/73, ao regular os direitos autorais, que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como … os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência” ( art. 7º, inc. X). E coloca como direito moral do autor “o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra” (art. 25, inc. IV).
5.3. Tombamento
A restrição à instalação de cartazes pode estar ainda baseada no tombamento de bens imóveis. O Decreto-lei Federal n° 25/37, que “Organiza a Proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”, prevê:
Art. 1º – Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
…………………………………………….
§ 2º – Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana.”
Regra específica relativa a publicidade externa encontramos no seu art. 18, que dispõe:
“Art. 18- Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso a multa de 50% (cinqüenta por cento) do valor do mesmo objeto.”
Existe portanto fundamento legal para que determinado imóvel, ou até mesmo um bairro inteiro, seja objeto de tombamento e dessa forma receba, juntamente com sua vizinhança, especial proteção paisagística. [46]
6. Conceito de poluição visual
Resta então definir, pois, o que é poluição visual?
Poluição visual é pois, conseqüência e resultado de desconformidades de todas essas situações e também o efeito da deterioração dos espaços da cidade pelo acúmulo exagerado de anúncios publicitários em determinados locais, porém, o conceito mais abrangente é aquele que diz que há poluição visual quando o campo visual do cidadão se encontra de tal maneira que a sua percepção dos espaços da cidade é impedida ou dificultada.
O que impede ou dificulta a percepção da cidade pelos seus cidadãos?
Podemos enumerar:
- A falta de uma consciência do público e do privado e de uma educação ambiental. O conceito de que a coisa pública não é de ninguém e que portanto ninguém é responsável por ela e que nela se pode fazer o que se queira, faz com que não somente a população em geral, mas também os órgãos gestores das cidades tratem o espaço público como espaço a ser abandonado ou maltratado (estacionamento de carros nas vias, colocação de placas de publicidade nas calçadas, comércio nas calçadas, mesas de restaurantes e outros objetos nas calçadas, abandono de lixo e materiais de demolições nas calçadas e ruas, etc.);
- A desordenação de elementos presentes na paisagem (equipamentos e mobiliário urbanos tais como placas de logradouros, placas de trânsito, bancas, cabines telefônicas, postes de iluminação pública, lixeiras, floreiras, etc.) torna difícil a compreensão dos espaços da cidade, ora, a inadequação da localização de mobiliário e equipamentos urbanos comprometendo a circulação, as perspectivas, os padrões urbanísticos, a segurança dos pedestres e o consequente aparecimento de espaços extremamente fragmentados e inúteis;
- O recobrimento da fachada dos edifícios por meio de anúncios publicitários e a colocação de anúncios cada vez maiores e em grande quantidade mascara a identidade dos espaços da cidade, tornando-os inócuos e todos semelhantes, dificultando a orientação do cidadão e escondendo referenciais que fazem com que a cidade se diferencie de outras (sítios naturais, edifícios históricos, praças, parques, etc.). O acúmulo de elementos publicitários nas fachadas de estabelecimentos comerciais e de serviços recobrem inclusive edifícios representativos da cidade. Os anúncios passam a encobrir, ocupar o lugar ou substituir os marcos referenciais dos lugares;
- A colocação de publicidade em locais que prejudica a sinalização de trânsito e/ou que impede a visualização e visibilidade causa problemas de segurança além de interferir no direito do cidadão;
- A legislação (muito farta em leis e decretos) pontual não leva em conta a paisagem da cidade. Desde as leis de uso do solo, por exemplo que permitem a verticalização sem considerar as visuais ou a possibilidade de percepção da topografia da cidade até uma legislação atual de anúncios bastante genérica e permissiva em todos os lugares, tornando seus espaços muito iguais;
- A gestão da paisagem é inexistente. Não há projeto integrado nem cadastro e nem coordenação das ações que são desenvolvidas no espaço da cidade. A fiscalização é quase inexistente. Por outro lado, inexiste também, uma manutenção de serviços urbanos, fundamental para que a qualidade da paisagem urbana seja preservada. Assim, por exemplo, a conservação das fachadas e das calçadas, na maioria das vezes, deixa a desejar. Enfim, a deterioração física e ambiental revela uma omissão sucessiva de gestões municipais, baixos padrões de manutenção urbana contribuindo para a degradação ambiental;
- A decisão de transformação dos espaços da cidade vem de cima e a participação da população é pequena. Esta situação faz com que a população não se sinta dona nem responsável pelo lugar que passa ou mora;
Inexiste uma política de identidade visual e consequentemente formas alternativas para a melhoria da qualidade de vida e propostas de soluções viáveis para a problemática da intensa poluição visual.
7. Recomendações preliminares para o controle paisagístico
Quais normas podem tutelar eficientemente o paisagismo urbano, preservando os aspectos estéticos das cidades e impedindo a poluição visual?
Seriamleis de polícia, eis que relaciona-se à “atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-a aos interesses coletivos”. [47]
O poder de polícia tem, “na quase totalidade dos casos, um sentido realmente negativo”, no sentido de que “através dele o Poder Público, de regra, não pretende uma atuação do particular, pretende uma abstenção. Por meio dele normalmente não se exige nunca um facere, mas um non facere”. [48]
Deste modo, Somos da opinião de que:
- Os projetos elaborados pela Administração pública, no aspecto de sua paisagem urbana, devam ser apresentados aos interessados e que os mesmos devam opinar sobre as intervenções a serem implantadas e que as propostas regulamentadoras dos anúncios de cada localidade representativa da cidade devam ser fruto da intervenções de readequação empreendida a partir da compatibilização dos interesses dos moradores e comerciantes locais e assim, a recuperação da qualidade ambiental deva tornar-se mais cristalina e evidente aos usuários.
- Iniciativas populares como a disposição e o engajamento de associações comunitárias e entidades como as da Associação dos Moradores e Amigos de Pacaembu, Perdizes e Higienópolis – AMAPPH, do Bairro Vivo, do Defenda São Paulo, da Associação de Amigos do Jardim Paulistano, da Associação de Moradores do Alto de Pinheiros, etc, devem ser incentivadas e respeitadas. Dentro do exercício dos direitos da cidadania, este espaço a estas comunidades prioritariamente dizem respeito e é justo que elas façam a sua gestão da melhor maneira possível, inclusive no que diz respeito ao anúncio publicitário que lhe é colocado à sua frente dificultando a percepção e compreensão dos espaços da cidade, sem a menor preocupação com o bem estar geral da população, no que tange às suas grandes dimensões, inadequações de toda ordem e mau desenho gráfico, na maioria das vezes, de gosto duvidoso,
- A questão da paisagem urbana, nos aspectos que envolvem a sua comunicação visual e a disposição dos anúncios publicitários, pelo menos a metade deles está em situação irregular ou com licenciamento incorreto, pois sua permissividade como tal não pode ocorrer nesta circunstância ou neste local;
Os anúncios publicitários, regra geral, estão hipertróficos com dimensões que não respeitam a escala do pedestre, nem da via local e nem da massa edificada ao qual obrigatoriamente estes devem fazer referência. Apontamos alguns princípios e regras cuja observação pode assegurar a manutenção de padrões paisagísticos desejáveis:
I- Distinção entre anúncio indicativo e publicitário;
II- Vedação da instalação de anúncios publicitários em área de uso comum do povo (canteiros, parques e jardins) e em imóveis ou bairro tombados ou de especial proteção por razões de valor histórico ou paisagístico.;
III- Estabelecimento de proporção entre a área do cartaz e a testada do imóvel, com especial limitação para os imóveis situados em esquinas;
IV- Caso onde possível, odisciplinamento de veiculação da informaçãopublicitária estabelecida com a permissão de colocação de anúncio que respeite a escala do pedestre, do gabarito de altura do edífício ao qual faz referência e ao entorno ao qual se insere, fixando-se tamanho máximo para anúncios publicitários que possibilite a visibilidade da fachada das construções;
V- Fixação de altura máxima para cartazes publicitários apoiadas em suporte, que não poderá jamais ser superior à altura das edificações próximas;
VI- Responsabilidade civil por dano paisagístico;
VII- Responsabilidade solidária entre o proprietário do imóvel onde foi instalado o cartaz, a empresa locadora do espaço publicitário e o anunciante por abusos que resultarem em dano paisagístico;
VIII- Proibição de telões eletrônicos junto a vias de tráfego de veículos;
IX- Instalação nas fachadas dos imóveis apenas de cartazes de publicidade de produtos e serviços disponíveis no local, ou indicativas de estabelecimentos ali instalados;
X- Fixação de distância mínima entre cartazes de grandes dimensões, de modo a garantir a rarefação de sua distribuição;
XI- Proibição de fixar qualquer elemento, indicativo ou promocional, perpendicular ao alinhamento dos terrenos, reduzindo-se assim imediatamente o efeito visual poluidor dessas mensagens, independentemente de sua quantidade, excetuando-se apenas hospitais, delegacias de polícia, escolas e estacionamentos, que por sua natureza precisam se destacar em relação aos demais elementos circundantes;
XII-Retiradade faixas e pichações, inibindo-se a fixação destes através de efetiva restrição e proibição de anúncios ao ar livre, qualquer que seja seu suporte ou dimensão, que de qualquer forma possa invadir, obstruir, prejudicar, agravar, quaisquer espaços, afastamentos, gabaritos, etc., que sejam objeto de regulamentação por parte do código de obras, ou qualquer outra forma de regulamentação do espaço e do espaço edificado na cidade, ou mesmo interferir em visuais pré-existentes, insolação e ventilação dos espaços urbanos e edificados; [49]
XIII- Compatibilidade entre as características dos anúncios e as características de cada região da cidade, estabelecendo-se um zoneamento.
Nestas condições, acreditamos que deva, ainda ser incentivada ações conjuntas para:
- Fiscalização efetiva e o cancelamento irrestrito de licença para anúncios irregulares;
- Estabelecimento de outras medidas e instâncias fiscalizadoras mais específica e menos comprometidas do que a atual enfatizando-se os aspectos ambientais da paisagem;
- Recuperação dos padrões urbanísticos dos espaços públicos como calçadas e praças nos aspectos da vegetação e da iluminação;
- Readequação de localização de equipamentos como bancas, floreiras, lixeiras, orelhões, pontos de taxis, terminais e abrigos de ônibus, postes, berços de lixeiras, etc, pois os espaços que os abrigam sofrem o impacto direto desses usos normalmente gerando desconforto, soluções improvisadas;
- Recuperação de empenas cegas de edifícios e incentivo a implantação de soluções visuais que atenuem o impacto destes como, por exemplo, painéis executados sob a interveniência de artistas plásticos e arquitetos;
- Padronização de mobiliário urbano, tais como abrigos de ônibus, bancas, floreiras, lixeiras;
- Criação de uma identidade visual urbana para os lugares respeitando-se as peculiaridades locais, a partir de uma visão contemplativa abrangente e também respeitando os fragmentos;
- Uma compreensão mais clara da gestão da paisagem urbana, visando implantar uma intervenção efetiva que considere a gráfica urbana produto de intervenientes signicos e não meramente numérico e quantitativo, imprimindo-se uma visão sistêmica à paisagem, composta de elementos que dão qualidade, identidade e sobretudo legibilidade levando-se em conta fatores sócio-culturais da paisagem ao longo do tempo;
- Imprescindível a criação de uma comissão multidisciplinar, portanto para a imediata e urgente readequação da publicidade e aprovação de mensagens visuais, sob a égide de um organismo que compreenda a dimensâo estética e paisagística (paisagem urbana) do meio ambiente como um todo;
- Finalmente, os problemas dos efeitos negativos tais como a poluição visual, advindos do ambiente urbano trazem como conseqüência a deterioração da qualidade de vida da população residente em áreas urbanas e de todos os aspectos que envolvem barulho (poluição sonora), contraste, conflito, diferença, dualidade nos elementos que compõem o meio ambiente (poluição atmosférica e visual), trânsito, violência, insegurança. Estes afetam o cotidiano pessoal dos cidadãos que no bojo destas questões levantadas nesta discussão iniciam-se aqui, estas são algumas referências que deverão ao longo do curso, serem enriquecidas e amadurecidas.
8. O projeto de sistema de comunicação visual
O resgate dos aspectos da paisagem urbana, através de um conjunto de diversas ações e agentes que interferem na paisagem, coordenada por um gestor que compreenda de fato a visualidade como parte componente desta paisagem interdependente de sua qualidade que priorize imediatamente um cadastro das ocorrências visuais efetivamente controlável é o primeiro passo da revitalização. Deve buscar sua identidade visual como resultado do conjunto de ações envolvendo-se a iniciativa privada (comércio, serviços, instituições), comunidade local (associações, entidades e organizações) e a Administração Pública. Aos profissionais da área de comunicação visual em estreita parceria com a comunidade local caberão elaborar uma proposta de um sistema de comunicação visual (auto sustentável) com vistas especialmente aos aspectos históricos, cultural, pedagógico e de educação ambiental para o conjunto da localidade.
Os objetivos das medidas imediatas:
- permitir a boa percepção e compreensão da estrutura da paisagem urbana pela comunidade e todos os usuários;
- identificar os principais referenciais do local, integrando-se o ambiente físico com o seu contexto sócio-cultural de seus usuários;
- identificar as vias, logradouros como praças, ruas, avenidas, bairros, imóveis, números, etc., indispensáveis ao seu dia-a-dia;
- identificar os serviços públicos essenciais como equipamentos hospitalares, de segurança, transportes, telefone, estacionamentos, etc, enfatizando-se para a demanda das necessidades do usuário em seu tempo de permanência junto aos mesmos;
- atender as demandas informacionais referentes as funções urbanas, atentando-se para o aumento do conhecimento público destas perante a sua população;
- indicar o way-finding (identificação dos percursos) e rotas de deslocamentos cotidianos e especiais, orientando os fluxos, informando as direções e destinações dos transportes de massa e coletivos;
- controlar e regulamentar os fluxos de veículos e pedestres, melhorando-se os meios precisos de circulação e índices de segurança;
- coordenar os usos do espaço urbano pela publicidade particular, priorizando o conforto visual dos habitantes;
- contribuir para multiplicação da formação cultural e educacional do habitante;
- hierarquizar a utilização do espaço urbano pela mensagem visual, corrigindo-se as inadequações configurando-se não apenas pelas zonas de uso mas regulando-se pela gradativa proibitividade de suportes inadequados e provisórios de grandes dimensões de mensagens visuais de caráter promocional nas áreas centrais, residenciais, espaços livres, parques, etc, reduzindo-se, assim, ao mínimo, as possibilidades de ocorrência dos efeitos maléficos como a poluição visual urbana.
- contribuir para a qualidade de vida urbana, enfatizando-se os elementos que proporcionem condutas para um sentimento de tranquilidade, segurança, deleite, prazer, conforto, integração e amor pela cidade especialmente pela sua paisagem;
Metodologia de projeto
- Analisar a situação arquitetônica e urbana da área de intervenção;
- Identificar os problemas existentes;
- Compreender as causas desses problemas;
- Definir estratégias desses problemas;
- Elaborar proposta de comunicação visual conforme estratégia adotada;
- Discussão da solução no contexto do conjunto de todas as outras ações propostas.
A organização dos elementos visuais dos sistemas espaciais e comunicacionais:
- O sistema do desenho urbano: infra- estrutura, equipamento e mobiliário;
- O sistema de sinalização;
- O sistema referencial simbológico;
- O sistema paisagístico ambiental;
- O sistema dos aspectos e elementos institucionais.
Configurações espaciais
A valorização dos aspectos geográfico/cultural ou histórico: a comunicação visual do local.
Os setores, as atividades, os equipamentos e mobiliários urbanos disponíveis para uso: áreas verdes, comércio, cultura, esportes, educação, recreacão, saúde, serviços, transporte, viário e infra-estrutura: a comunicaçao visual no local:,
Possíveis configurações espaciais imediatas:
- Sinalização pública de logradouros (ruas, avenidas, praças); sinalização de orientação e de indicação, totens e pórticos das entradas, saídas e principais cruzamentos; sinalização semafórica; pontos de ônibus, táxi e metrô, painel informacional dos pontos de interesse (serviços, histórico, cultural e turístico);
- Mobiliário urbano: banca, lixeira, floreira, cabine, iluminação pública;
- Paisagismo, tratamento de piso, áreas verdes e;
- Sinalização privada: fachadas, anúncio, publicidade, disciplinamento, auto-regulamentação e legislação; e finalmente
- Os referenciais implícitos e explícitos, ícones, símbolos, patrimônio artístico cultural arquitetônico, pictórico e escultórico; empenas; os lugares públicos e privados.
9. Conclusões
O ordenamento jurídico brasileiro revela em diversos dispositivos sua preocupação com a tutela da estética da paisagem. Não se pode, todavia, afirmar que o combate à poluição visual no Brasil ganhou o status merecido. As empresas de comunicação externa avançam sobre nossas cidades instalando painéis de grandes dimensões. A consciência sobre a importância de deter esse avanço ainda é fraca e tímida tem sido a reação da sociedade. Talvez seja necessário chegar a um grau insuportável de poluição visual para que se desencadeie uma reação [50] . A Prefeita Marta Suplicy na cidade de São Paulo já demonstrou empenho e a possibilidade de frear este estado de coisa.
Porém, mais do que isto, a utilização de instrumentos jurídicos na defesa da paisagem urbana deve estar escorada no desejo dos munícipes de viver numa cidade agradável, que preserva seus valores ambientais. O aperfeiçoamento da legislação, visando banir a poluição visual, só virá com a consciência de que toda atividade econômica deve estar pautada no respeito a princípios éticos. [51] Com a consciência, enfim, de que
“uma cidade não é um ambiente de negócios, um simples mercado onde até a paisagem é objeto de interesses econômicos lucrativos, mas é, sobretudo, um ambiente de vida humana, no qual se projetam valores espirituais perenes, que revelam às gerações porvindouras a sua memória”. [52]
Junho de 2001
voltar[1] Texto produzido a partir de palestra proferida pelos autores no curso “A problemática ambiental no Municipío de São Paulo” , promovido pelo DECONT da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente – SVMA da Prefeitura do Município de São Paulo, em São Paulo, em 11 de outubro de 2000.
Vide complementarmente : “Paisagem urbana de São Paulo: Publicidade externa e poluição visual in:
voltar[2] No Decreto n° 33.395/93, do Município de São Paulo, paisagem urbana é definida como “o que é visível no espaço urbano, inclusive a configuração exterior do espaço privado” (art. 1°, inc. I). No Projeto da Convenção Européia de Paisagem, encontramos a seguinte definição de “paysage”: “désigne une partie de territoire telle que perçue par les populations, dont le caractère résulte de l’action de facteurs naturels et/ou humains et de leurs interrelations” (Submetido ao Comitê de especialistas encarregados de redigir a Convenção Européia de Paisagem, Estrasburgo, 13 de março de 2.000, Conselho Europeu. Capitulo I, art. 1, letra a).
voltar[3] Os dicionários dão à palavra “estética” o significado de “harmonia das forma, contornos e coloridos” e o de “beleza” (Laudelino Freire, Dicionário da Língua Portuguesa, José Olympio, 3ª ed., 1957, vol. III, p. 2.378 e Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Nova Fronteira, 2ª ed., 1986, p. 720).
voltar[4] Submetido ao Comitê de especialistas encarregados de redigir a Convenção Européia de Paisagem, Estrasburgo, 13 de março de 2.000, Conselho Europeu.
voltar[5] A Constituição Paulista emprega as expressões meio ambiente urbano (art. 180, III),meio ambiente natural e meio ambiente artificial (art. 191). Maria Sylvia Zanella Di Pietro reconhece que “a matéria urbanística está inserida em um contexto maior ligado à idéia de proteção do meio ambiente, expressão, por sua vez, de grande amplitude” (Poder de polícia em matéria urbanística, in Temas de Direito Urbanístico, Imprensa Oficial, SP, 1999, p. 29). A respeito ver ainda José Afonso da Silva, Direito Ambiental Constitucional, São Paulo: Malheiros. 1994, pp. 2/4
voltar[6] Em 1991 a população urbana do Brasil já chegava a 110.875.826 de habitantes (cf. IBGE -Anuário Estatístico 1992, p. 207).
voltar[7] Adrian Phillips, professor da Universidade de Cardiff, afirma que “the general thought is that landscape is emerging as the new frontier for environmental law … It certainly has not received the level of attention that, for example, biodiversity, conservation or pollution control have received” (Landscape Conservation Law,cit., p. 65).
voltar[8] Paulo Affonso Leme Machado aponta a paisagem como bem ambiental de que se ocupou a Constituição Federal de 1988 (Direito Ambiental Brasileiro, Malheiros, SP, 8ª ed., 2.000, p. 110).
Prof. Dr. Issao Minami – Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Bacharel Dr. João Lopes Guimarães Júnior. Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo