Biodiversidade: ferramenta para a competitividade

O Brasil é reconhecido no mundo inteiro como o país mais rico em termos de diversidade biológica. É chegado o tempo de identificar maneiras e meios de como converter essa riqueza num instrumento para a competitividade, bem como numa base para responder às necessidades básicas de todos os cidadãos em termos de água, alimentação, abrigo, assistência de saúde e energia. Neste texto se demonstrará que é possível responder às necessidades prementes, especialmente dos pobres e daqueles que vivem da terra, ao mesmo tempo em que se embarca num caminho co-evolutivo com a natureza. Os três casos nos quais colaboramos na busca de sucesso usando recursos biológicos estão disponíveis nos ecossistemas brasileiros, eles são: o bambu, o arroz e o café.

A economia globalizada determina que a competitividade é definida como a combinação mais eficaz de mão-de-obra, capital e produtividade material. Na realidade, ainda que a atual lógica econômica seja dominada pelo conceito “produto gerado por trabalhador por hora” ou pela produtividade de mão-de-obra, ou pela produtividade de capital, o valor atribuído às matérias-primas é considerado trivial na equação da economia mundial. Embora isso possa fazer sentido do ponto de vista das nações industrializadas, onde o custo real dos materiais de insumo é marginal (por exemplo, o valor adicionado de matérias-primas num relógio é menos de 3%) e onde a diversidade biológica é muito pobre, a equação muda completamente quando consideramos as oportunidades para o mundo em desenvolvimento. A riqueza em diversidade biológica oferece oportunidades de desenvolvimento únicas que são desconhecidas e, portanto, inexploradas na economia mundial que é dominada por nações caracterizadas “quatro estações”.

Do Norte industrializado, caracterizado por uma pobre diversidade biológica, não se pode esperar que dê atenção prioritária à riqueza de recursos naturais, nem podem os economistas e especialistas em desenvolvimento imaginar como uma economia pode viver de sua riqueza natural. Países como o Brasil, que têm uma vasta reserva de diversidade biológica, podemos chamá-la mesmo de mega-diversidade, baseados na imensa variedade de espécies disponíveis, poderiam redefinir sua posição competitiva. Essa diversidade biológica inclui os animais e plantas que estão bem documentados, mas também deve cobrir os bem menos conhecidos fungos, algas e bactérias. Segundo análises inovadoras e competitivas, a força de uma economia não é determinada pela mera disponibilidade de fatores insumos. A força da economia brasileira é determinada por sua diversidade, e a interação dinâmica entre os componentes mais díspares dos “Cinco Reinos da Natureza”.

A geração de empregos, a capacidade de responder às necessidades locais, a capacidade de gerar dinheiro e a capacidade de construir capital social são considerados quatro componentes chave para determinar a resistência social e econômica últimas da economia local. O vetor é a busca de níveis mais altos de produtividade, especialmente de produtividade material. Uma vez que a economia brasileira se caracteriza por uma abundância de biodiversidade, de abundância de mão-de-obra, e de escassez de capital, a estratégia de desenvolvimento deve, conseqüentemente, basear-se naqueles três componentes.

Imaginem simplesmente o uso do bambu como uma ferramenta para a geração de empregos e com capacidade para responder às necessidades locais. Em Maceió, a Fundação Brasil ZERI negociou com as usinas de açúcar a conversão das partes menos produtivas da plantação numa área remanescente da Mata Atlântica. Embora a população local se opusesse a essa decisão, temendo perdas adicionais de empregos nas plantações de cana-de-açúcar, a iniciativa mereceu o benefício da dúvida. O reflorestamento com cerca de 40 diferentes espécies exige paciência e visão. A inclusão de uma espécie nativa de bambu de rápido crescimento foi um golpe de mestre. Com efeito, o pequeno bambu poderia ser colhido dentro de um par de meses e tornou-se a matéria-prima do “Projeto Cabide”, a fabricação de cabides a partir de materiais locais.

O cabide foi concebido por Lucio Ventania, um criativo artista de Belo Horizonte que imaginou a produção de cabides sem o uso de qualquer cola ou metal. Uma vez que o bambu, que é uma gramínea e não uma árvore, pode ser colhido em poucos meses.

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Programa Bambu

O “Programa Bambu” foi inspirado num projeto ligado ao bambu comparável, realizado na Colômbia. A espécie local de bambu, chamada Guadua angustifolia, tornou-se o elemento central de um programa de habitação pelo qual a capacidade de fazer juntas de bambu, segundo os códigos alemães de construção, tornou-se uma ferramenta importante para o desenvolvimento de habitações sociais. Segundo o Smithsonian Institute há cerca de 2.000 espécies de bambu. O Brasil e a Colômbia têm a maior diversidade. As variedades colombianas são ideais para a construção e os testes científicos financiados pela Fundação ZERI demonstraram que os bambus mais fortes superariam à força de tensão e de compressão do aço e do cimento.

Esta é uma conclusão dramática. O bambu é um material natural, considerado pelos mais pobres dos pobres como um símbolo de sua pobreza. Mas, segundo relatórios científicos dos engenheiros alemães da área de construção, o bambu atende a todos os padrões e normas dos códigos de construção da Alemanha, uma nação que não planta qualquer espécie nativa. 

A dinâmica do bambu é até mesmo mais impressionante. Quando se considera que em meros cem metros quadrados é possível colher suficiente bambu para “criar” uma casa a cada ano. Isso proporciona uma nova visão de como responder às necessidades habitacionais em algumas regiões onde o uso de blocos de cimento e de telhados de zinco oferece abrigo, mas raramente um lar.

Imaginem simplesmente que cerca de 100 bambus de 9 metros são suficientes para proporcionar a estrutura para a moradia social. Uma casa de dois andares, com uma grande sacada, com cerca de 67 metros quadrados de espaço útil e um custo de construção quando o próprio proprietário constrói se limita a meros 1.750 dólares. A moradia social é vital, e proporcionar abrigo a todos é um dever. Assim, o conceito de “plante sua própria casa” baseado em sistemas inovadores de construção e em técnicas de preservação é uma revolução. Mais ainda, uma vez que seu financiamento pode ser parcialmente garantido através da venda de direitos de seqüestro de carbono. Com efeito, uma vez que o bambu é capaz de reter 40 vezes mais dióxido de carbono por hectare por ano do que qualquer árvore, a promoção da moradia social usando bambu equivale à estabilização do clima.

A chave do sucesso é a preservação de bambu. Em cooperação com cientistas japoneses, os colombianos refinaram a técnica do bambu defumado. Basicamente a parte do bambu que não é usada para construção (40%) é convertida em carvão. A inovação é que os gases liberados nesse processo são capturados, destilados, purificados e re-evaporados no próprio bambu. Como resultado, o bambu é preservado por sua própria bioquímica. O efeito é simples: os produtos químicos tóxicos são substituídos por agentes naturais de preservação, a casa de bambu tem um período de vida de 5 a 50 anos, aumentando a base de capital, gerando empregos locais e reduzindo o uso de materiais não-sustentáveis.

O próximo passo é a eliminação do amianto e de suas fibras substitutas por fibras de bambu. Uma vez que o reforço de placas de cimento com fibras minerais é a norma, o uso de fibras vegetais tem sido considerado inviável pela simples razão de que a presença de açúcares inibe a cristalização perfeita do cimento. No entanto, um estudo cuidadoso de fungos que vivem no bambu permitiu a produção de um “iogurte” que libera quantidades maciças de enzimas que destroem todos os açúcares. Isso torna as fibras de bambu um substituto ideal para o amianto. A primeira dessas fábricas foi criada nos arredores de Jacarta, na Indonésia, através de um investimento japonês.

Abordagem sistêmica dos alimentos

A concepção de um conglomerado de atividades em torno do bambu, que inclui um programa de moradia social seqüestrador de dióxido de carbono, ao mesmo tempo em que promove a eficiência e a beleza, com base numa concepção ecológica, não é apenas socialmente responsável, é também economicamente viável e reflete a riqueza em cultura e artes.

O que surge é um conglomerado de atividades sócio-econômicas que transforma o bambu economicamente “inativo” num motor de desenvolvimento. É na mesma linha de pensamento que se pode começar a reavaliar vários ecossistemas e imaginar um programa econômico que responda rapidamente às necessidades das pessoas. Outro conglomerado de atividades deste tipo foi desenvolvido em torno do café.

O preço do café no mercado mundial caiu a seu nível mais baixo em seus 100 anos de história. O bambu não é usado de modo algum, mas o café somente é usado marginalmente. Na realidade somente 0,2% do que qualquer cafeicultor produz termina na xícara de café, o resto é considerado dejeto. Um programa nas fazendas e em cidades do interior da Colômbia transformou essa maciça corrente de dejetos, ou melhor, esse volume maciço de biomassa não utilizada numa fonte de proteínas. Na realidade, os programas de desenvolvimento regional na Região do Café – Pereira, Armenia, e Manizales – prevê que até 60% da segurança alimentar local para crianças serão gerados a partir de dejetos do café, tanto nas fazendas quanto nas unidades de beneficiamento quanto nas casas.

O café é rico em cafeína. No entanto seus dejetos, ricos em fibras e proteínas, nunca foram considerados apropriados para uso como forragem, uma vez que a cafeína provocaria estresse nas vacas tanto quanto o excesso dele provoca em qualquer ser humano. No entanto, uma série de cogumelos vive melhor em substratos ricos em cafeína; isto é especialmente verdadeiro para o shiitake (Lentinula edodes), um cogumelo tropical reconhecido por sua riqueza em aminoácidos essenciais e em componentes nutarrozúticos, como terpenoides e proteínas polisacarídeas.

Tradicionalmente, o shiitake é cultivado em madeiras de lei como o carvalho. Isso tem levado a esquemas maciços de desmatamento na China, onde o shiitake e os cogumelos tropicais correlatos agora representam uma indústria de exportação de aproximadamente 1,7 bilhões de dólares. Os dejetos do café são um substrato ideal para cultivar nas hortas escolares os cogumelos shiitake.

O cultivo de cogumelos na cidade de Manizales, na Colômbia, levou à criação de empregos em favelas. Os dejetos do café local são fermentados, inoculados, transformando edifícios não utilizados em unidades agrícolas urbanas onde cooperativas geram empregos e alimentos. Os cogumelos são integrados ao programa de merenda escolar, assegurando proteínas para as crianças, ao mesmo tempo em que proporcionam renda para as mães. O cultivo de cogumelos exige higiene, que é prontamente aceita, uma vez que o cultivo agora é para geração de renda. A quantidade de dejetos orgânicos é reduzida, melhoram-se as condições de saúde, enquanto se minimiza o volume de lixo coletado. Os dejetos do cultivo de cogumelos não contêm cafeína e são ricos em proteínas, enquanto que as fibras geralmente já foram trituradas. Agora é uma boa forragem. Os programas de hortas em escolas estão adaptados ao cultivo de cogumelos. As crianças nas aulas, tanto dentro quanto fora da cidade, aprendem como transformar os dejetos da escola em alimentos; eles são convertidos numa deliciosa refeição uma vez por semana. As crianças, desde as tenras idades de 4 e 5 anos no jardim da infância aprendem desde cedo que a natureza é abundante.

O conglomerado do arroz no Sul do Brasil

A abordagem ZERI sugere que tudo o que é dejeto para um é alimento para outro, mesmo que pertença a outro reino da natureza. É esse cascatear de matéria e energia que torna a capacidade de regeneração dos ecossistemas tão forte. É nossa falta de entendimento de como os “Cinco Reinos da Natureza” se interligam e continuam – na temperatura e na pressão do ambiente – a converter restos e recursos não utilizados em nutrientes, reservas, energia e estrutura para outros. A estratégia empresarial central, que domina a atual lógica dos negócios, torna impossível considerar um tal conglomerado de atividades econômicas. Embora seja exatamente esse conglomerado que permite que a economia local responda às necessidades da comunidade.

Um programa desse tipo é o uso da água da irrigação de plantações de arroz para o cultivo de algas do tipo spirulina. Os casos anteriores demonstraram a inter-relação entre plantas, animais e fungos. Agora isso se enriquece mais ainda com a oportunidade oferecida pelas algas. A Spirulina platensis se desenvolve em ambiente alcalino. 

É rica em betacaroteno e apenas uma grama por dia proporciona uma série de minerais que proporcionam os nutrientes básicos que uma criança necessita para se desenvolver. A capacidade de assegurar saúde e nutrientes originalmente foi demonstrada na região do Lago Chade (África) e a spirulina rapidamente se tornou o suprimento alimentar favorito dos hippies nos anos sessenta. Devido a chuvas ácidas decorrentes da poluição descontrolada do ar, há poucas condições naturais para que as algas se possam desenvolver. Uma das principais exceções é a ponta meridional do Brasil, hoje caracterizada por uma crise no cultivo do arroz.

Se considerarmos somente o preço do mercado mundial para o arroz, então os rizicultores do Sul do Brasil estão em crise. Realmente, a um preço de meros 200 dólares por tonelada, não há possibilidade de sobrevivência para os trabalhadores. Mas se considerarmos o ecossistema em que o arroz é um componente central, então surge um amplo leque de oportunidades: a água é muitíssimo adequada para o cultivo das algas, a palha de arroz é ideal para cogumelos que se criam na palha (Volvariella volvacae), as espigas de arroz são uma rica fonte de silício com o qual pode-se fazer janelas não-transparentes, os dejetos da fazenda, inclusive os cogumelos, são alimentos para animais, o esterco dos animais gera biogás, os líquidos digestivos proporcionam alimentação adicional para as algas e a água residual é excelente alimentação para os peixes… não há simplesmente fim na generosa geração de alimentos fornecidos pela natureza. Não há qualquer razão para se ter fome no Brasil.

Qual é o elo que falta? O bambu!

Com efeito, as algas não cresciam porque a terra plana recebia muitos ventos, portanto há que se construir uma proteção. Quando as tendas tradicionais não podiam resistir ao fustigar constante dos ventos, o plantio de bambu mostrou ser uma solução ideal. Quando nos damos conta do poder da natureza, da lógica dos sistemas, dos arcos dinâmicos de retroalimentação que nos dá o nosso entendimento de como a natureza integra e separa sem a geração de dejetos, então podemos imaginar as maneiras e os meios para responder às necessidades das pessoas em co-evolução com a natureza. Esta estratégia proporciona água e alimentos, garante a geração de capital social e também consolida a noção de comunidade que dá força às pessoas. O atual sistema econômico pode ser o melhor que tenhamos imaginado, mas há certamente muito espaço para melhorias.

Zero Emissions Research and Initiatives – ZERI, é uma rede internacional de acadêmicos, empresários, governos e educadores que trabalha com questões ligadas à água, alimentos, saúde, abrigo, energia, educação e empregos, a definição clássica de desenvolvimento sustentável é “insustentável”. Segundo ele, dizer que a sustentabilidade se resume a garantir a satisfação das gerações atuais e também das futuras é insuficiente. “Precisamos atender às necessidades de todas as espécies que sobrevivem pela co-evolução, não só do Homem”, comentou Pauli.

Gunter Pauli – Economista e empresário, presidente da Zero Emissions Research and Initiatives – ZERI
Fonte: Revista Eco 21, Ano XIII, Edição 82, Setembro 2003. (www.eco21.com.br)