Pindorama saqueada

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No dia 11 de Maio deste ano, a repressão à delinqüência ambiental fez seu debut na agenda das megaoperações realizadas pela Polícia Federal. Por intermédio de sua Divisão de Repressão aos Crimes Ambientais, a DMAPH, o Departamento de Polícia Federal deflagrou a denominada Operação Pindorama, que apreendeu mais de cinco mil peças produzidas com partes de espécimes da fauna silvestre brasileira, prendendo temporariamente onze pessoas ligadas ao contrabando de tais itens.

Os Estados de Rondônia, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Bahia, São Paulo, Goiás, Distrito Federal, Roraima e Acre foram o palco da ação fulminante de mais de 120 agentes que, inclusive, utilizaram recursos aeronáuticos da Polícia Federal para transportar com celeridade e segurança os detidos e o material apreendido para Brasília, cidade onde estão centralizadas as investigações.

A Operação Pindorama foi planejada e executada em cumprimento a ordens judiciais emanadas da 10ª Vara Federal de Brasília, e em apoio ao inquérito policial, instaurado com a missão de assinalar a autoria e a materialidade de delitos cometidos por um grupo de brasileiros que vinha promovendo nos últimos 8 anos, em larga escala, contrabando de partes de animais da fauna silvestre brasileira, sob a fachada de comércio de artesanato indígena, inclusive envolvendo servidores públicos ligados à Artíndia, rede de lojas estabelecidas sob a égide da FUNAI, bem como outras lojas que, em caráter privado, se dedicavam a tal comércio.

Em resumo, a atividade criminosa centralizava-se no cidadão estadunidense de origem tcheca, Milan Hrabovski, que, dos Estados Unidos, encomendava, via fax, artefatos indígenas produzidos com plumas, garras, presas e ossos de animais silvestres brasileiros.

Mereceu especial atenção, o fato de Hrabovski não encomendar apenas artefatos indígenas lavrados com a técnica e a cultura dos silvícolas brasileiros, mas também garras, presas, ossos e plumagem de forma avulsa, onde não há agregação de qualquer arte ou trabalho tradicional. Um número considerável de pessoas, muitas das quais de alguma forma relacionadas à FUNAI e à Artíndia, recebiam o pedido, encomendavam à terceiros os itens solicitados, e os enviavam aos EUA ou à República Tcheca, utilizando o serviço SEDEX do correio brasileiro. O que se promovia, por encomenda, era uma verdadeira e escancarada chacina de inúmeras espécies da fauna silvestre brasileira, muitas delas em extremo risco de extinção.

Hrabovsky, o idealizador do esquema criminoso, recebia no exterior os itens por ele encomendados, e comandava depósitos em dinheiro – por transferência eletrônica do tipo wire transfer – nas contas bancárias de seus colaboradores no Brasil, em bancos brasileiros.

Há, nas ações da organização criminosa ora desmantelada, não apenas o alcance nacional, uma vez que envolve várias unidades da Federação, mas também o caráter de transnacionalidade, pois é certo que existem conexões em pelo menos três países distintos (Brasil, EUA e República Tcheca).

O caso mereceu, também, a atenção e a atua­ção da polícia federal estadunidense, do U.S. Fish and Wildlife Service que, em cooperação internacional de polícia com a Polícia Federal brasileira logrou êxito em prender o aludido cidadão, realizando busca em suas empresas, a Rain Forest Crafts e a Tribal Arts, ambas dedicadas ao comércio de tais artefatos.

Cópias dos principais documentos arrecadados nas buscas realizadas pela polícia dos EUA – devidamente autorizadas por sua Justiça – foram encaminhadas ao Departamento de Polícia Federal, assim como fotografias dos itens apreendidos e dos pacotes despachados do Brasil, consubstanciando-se na notitia criminis que motivou a própria instauração do inquérito policial.

Entre tais papéis encontravam-se mensagens de fax e e-mail trocadas entre Milan Hrabovski e seus colaboradores no Brasil, bem como as próprias ordens de transferências bancárias, com números de contas, telefones, endereços e, ainda, as encomendas comandadas dos EUA, onde se observa a enorme gama de espécies alvejadas pelo interesse daqueles criminosos.

Além da Lei penal vigente no Brasil, a conduta da quadrilha feriu frontalmente os ditames estabelecidos pela Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Ameaçadas de Extinção – CITES, assinada em Washington, em 3 de Março de 1973, que entrou em vigor em 1 de Julho de 1975 – mesmo ano em que o Brasil aderiu ao acordo (Decreto 76.623).

Hoje são membros da CITES 164 países e eles estão obrigados a respeitar as decisões da Convenção, cujo objetivo principal é o de assegurar a cooperação entre os países, de forma a que o comércio internacional de animais e plantas selvagens não ponha em risco a sobrevivência das mesmas.

A CITES protege atualmente mais de 30.000 espécies de animais e plantas, todas elas raras e ameaçadas de extinção, ou cujos níveis de comércio internacional podem comprometer a sua sobrevivência. A CITES está complementada por três Anexos, onde são relacionadas as espécies sob proteção da Convenção, sendo ainda classificadas de acordo com o risco que enfrentam.

O que ficou claramente evidenciado no presente caso, foi a atuação de um grupo de contrabandistas que, de forma organizada e departamentalizada, por um lapso de pelo menos 8 anos, provocou a captura e abate de milhares de animais silvestres – sob o falso e ingênuo manto da produção artesanal indígena – para aumentar um ávido e milionário mercado internacional estabelecido no eixo Estados Unidos-Europa.

Houve, ainda, a conseqüente exploração e cooptação de indígenas, os quais, muito certamente motivados pelo fascínio do lucro fácil, venderam barato suas riquezas naturais, emprestando-se como fornecedores primários de uma matéria-prima que, após a perniciosa e criminosa intermediação de comerciantes ditos “brancos”, chega ao seu mercado final atingindo preços verdadeiramente exorbitantes. A cadeia de lucros astronômicos certamente não envolve os nativos brasileiros, que acabam recebendo migalhas em troca da venda de sua caríssima biodiversidade. O inquérito correspondente colheu declarações de um respeitado cacique, que asseverou que os indígenas, em regra, abatem animais silvestres motivados pela voracidade do comércio de artefatos tradicionais.

Não é exagero reafirmar, como se observa do resultado das investigações, que Milan Hrabovsky não encomendava apenas artesanatos indígenas, mas partes “em bruto” dos animais, como garras de onças, dentes de macacos, plumagem avulsa etc.

Ao se observar que Hrabovsky também encomendou miçangas, fios e sementes, chegou-se à conclusão de que, na realidade, quem fabricava os artefatos “indígenas” era o próprio Milan Hrabovsky.

Houve, então, contrabando de insumos – partes de animais – para a montagem de falsos objetos indígenas, além do contrabando dos artefatos, no caso, em sua grande maioria, cocares feitos com penas de araras, harpias e outras espécies da avifauna brasileira.

Um fato surpreendente que se constatou foi a destemida utilização de uma instituição pública, por parte de um grupo de servidores, para promover, ao completo arrepio da Lei e totalmente fora do alcance do indispensável crivo das autoridades ambientais: o contrabando de centenas de produtos confeccionados com partes de animais silvestres ameaçados de extinção, a rogo do interesse puramente comercial de pessoas residentes no exterior.

Seria ingenuidade adotar o entendimento que tais artefatos – cocares, colares e adornos – são produzidos para o mercado interno. Decerto o alvo de tais peças é o consumidor estadunidense e europeu, historicamente mais interessados em arte tradicional e detentores de poder aquisitivo superior ao consumidor interno.

As investigações, efetivamente, evidenciaram a existência de uma lacuna e um vazio normativo que acabou permitindo de fato, mas não de direito, um comércio eivado de ilegalidade desde seu nascedouro. Houve um verdadeiro “deixa, que eu deixo”, expressão popular que define perfeitamente a presente questão.

A discussão sobre normas administrativas conflitantes na esfera puramente administrativa poderia até justificar a inércia do poder público em regulamentar de vez tal situação. Contudo, quando as condutas transgressoras alcançam e se adeqüam a diversos e gravíssimos tipos previstos em sede de Lei penal, causando prejuízos a bens ou interesses da União, se torna necessária a tomada de ações enérgicas, neste caso, por parte do Departamento de Polícia Federal, na condição de Polícia Judiciária da União.

Tornou-se, então, imperiosa a realização da Operação Pindorama, mormente em razão do aporte financeiro envolvido, da participação de servidores públicos na esteira das transgressões, da repercussão internacional, da exploração de indígenas, da utilização dos serviços do correio, e das espécies raríssimas alvejadas pela organização criminosa, entre outros aspectos.

Em tese, aos indígenas brasileiros, seria permitida a produção de artefatos e artesanato a partir de restos e partes dos animais que abatem em seu dia-a-dia na selva. O comércio interno de tais artefatos, mesmo levado a efeito pela rede de lojas da Artíndia, não seria legal, pois estaria ferindo frontalmente o estabelecido no art. 29 da Lei 9.605/98; muito menos a sua exportação, como já anteriormente argumentado.

Pois bem, o que se observou é que a “vista-grossa” que vem sendo feita para tal comércio, acabou por transformá-lo numa frenética linha de produção de artesanato, para alimentar um milionário e voraz esquema de contrabando internacional. Seria um contra-senso entender que uma peça possa ser vendida livremente no País, todavia sem poder ser levada para o exterior por seus compradores estrangeiros, aliás, os mais interessados em sua aquisição.

Cada um dos brasileiros detectados pelas investigações interagiu e participou de tal grupo, em módulos estanques. Mesmo que “departamentalizadamente” eles foram parte ativa do esquema, ora intermediando a aquisição dos produtos com indígenas, ora embalando e despachando os produtos, conforme estrita orientação de seu capo, Milan Hrabovsky.

Estava, à primeira vista, configurada uma bem estratificada malha criminosa, com tentáculos providenciais estabelecidos no comércio de artesanato indígena, e em órgãos públicos federais. Após as divulgações na mídia da Operação Pindorama, a FUNAI, com muita propriedade, determinou a imediata suspensão das vendas do artesanato indígena produzido com partes de animais silvestres. Há, no entanto, em curso, uma movimentação silenciosa e sorrateira, visando ao restabelecimento da situação anterior. Tal movimento vem sendo levado a efeito por inocentes úteis e pessoas desavisadas em geral que, manobrados pelos indivíduos e setores que obtinham altos lucros e vantagens com que aquele comércio, defendem o seu retorno, com o sofisma de que se tratava de atividade de ”valorização da cultura e tradições indígenas”.

Já estão falando, inclusive, que poderia haver um comércio a partir de uma atividade “sustentável”. Pura balela. Isto não poderia acontecer, pois as autoridades ambientais não se encontram presentes na selva, e não teriam como saber se os animais estariam sendo caçados em função do comércio ou em razão do dia-a-dia dos índios. O problema simplesmente continuaria a existir, e a autorização da agência ambiental serviria apenas para “lavar” animais abatidos ilegalmente.

É importante registrar que nas lojas de “artesanato indígena” alvejadas pelas buscas da Operação Pindorama foram encontradas, entre outras coisas, gordura de tartaruga in natura, crânios de onça, araras inteiras mortas, penas avulsas de aves silvestres, dentes avulsos de diversos mamíferos. Também foram encontrados, provavelmente como “insumos” daqueles itens “tradicionais”, espingardas, munição e milhares de dólares.

Merece especial registro um único colar – encontrado pela Polícia Federal numa dessas lojas – confeccionado com nada mais nada menos que 44 caninos de onça pintada, de diversos tamanhos. Uma lógica meramente aritmética nos faz concluir que fora necessário o sacrifício de pelo menos onze onças, pois esse felino tem apenas quatro dentes caninos. Registra-se que Habrovsky pagava 4 Reais por cada canino de onça, vendendo o colar por 4 mil dólares. Tudo pela tradição, é claro. E é bom lembrar, por oportuno, que índio não come onça.

As investigações mostraram ainda, que a caça e a captura de animais para o abastecimento das lojas de “artesanato indígena” não estariam sendo realizadas apenas pelos índios, pois há também “homens brancos” abatendo espécies silvestres para tal fim.

Outro elemento desalentador trazido à luz pelo inquérito é que não havia apenas a atuação de Milan Hrabovsky, mas dezenas de outros “gringos”, agindo da mesma maneira e com os mesmos objetivos. Afinal, a atividade é extremamente lucrativa. E o pior, tais cidadãos estrangeiros não estariam em tal empreitada ilegal se não houvesse brasileiros a lhes dar cobertura e apoio.

Lembremos-nos que os espetáculos circenses que utilizam feras amestradas estão saindo de moda, pois já é conhecido pelo grande público o sofrimento infligido aos animais, para que os mesmos realizem seus truques. As touradas, tradição secular dos povos iberos, vêm sendo tachadas como barbárie, e, por conseguinte fortemente alvejadas pela civilização moderna.

Se voltássemos no tempo uns cento e poucos anos, nos depararíamos com o circo de aberrações humanas, em plena Londres Vitoriana; e se o retorno fosse de dois mil anos, veríamos em Roma cristãos sendo devorados por leões, em tardes ensolaradas de domingo.

Já é tempo de deixar os cocares de plumas de araras azuis apenas para os museus de cultura indígena. Está na hora de incentivar – e subsidiar – os índios na produção de artesanato de cerâmica, madeira, palha ou de qualquer outra coisa que não tenha origem animal. Os recursos faunísticos são finitos e a biodiversidade está em queda vertiginosa, e tais premissas já seriam o suficiente para pensarmos desta forma.

Há, é claro, os aspectos culturais e indígenas do problema. Mas é certo que a questão ambiental deverá prevalecer sobre as demais; até porque os dois problemas se encontram totalmente interligados.

Não há duvida que, aos índios, sempre lhes será concedido o direito de abater animais silvestres para de eles extraírem sua alimentação e vestimentas e, também, adornos para seus rituais. Entretanto, o comércio ilegal de artesanato indígena produzido com partes de animais da fauna silvestre tem que acabar.

Jorge Barbosa Pontes – Delegado de Polícia Federal e Chefe da DMAPH
Eco 21 – Ano XIV – nº 94 – Setembro – 2004