É hora de cuidar do Brasil

Aprendi que há dois tipos de problemas na administração pública: os urgentes e os importantes. A tendência geral da administração pública brasileira era atender as urgências, ocupar-se com o dia-a-dia, dar respostas pontuais, buscar resultados imediatos e, principalmente, fazer ações que tivessem impacto na opinião pública. Enquanto isso, as importâncias iam ficando para depois. O passivo de problemas estruturais e a indefinição em questões estratégicas eram sempre empurrados para os governos futuros.

O Governo do Presidente Lula se preocupou, desde o início, em recuperar a capacidade de planejamento do Estado brasileiro. Por isso, sem descuidar das questões imediatas e dos problemas do dia-a-dia, buscamos reservar tempo e dedicação às questões estratégicas e às ações estruturantes.

Esta primeira Conferência Nacional do Meio Ambiente tem esse caráter. Ela busca aperfeiçoar a política ambiental brasileira para que tenha a dimensão do Brasil e que considere a importância estratégica do nosso país para o futuro do mundo. Nunca é demais repetir as quatro diretrizes que definimos para as ações do Ministério:

A primeira delas é o desenvolvimento sustentável. Meio Ambiente não é um entrave ao desenvolvimento; é a garantia de um desenvolvimento adequado. A floresta, o pantanal, os rios, o mar, nada disso impede o Brasil de desenvolver energia, indústrias ou transportes, de gerar empregos e moradia, de distribuir renda e justiça social. Ao contrário, a natureza é a fonte de todas essas riquezas. Só precisamos aprender a fazer as coisas de modo adequado, a tomar os cuidados necessários, a seguir as leis e a ouvir a voz do bom senso. O Ministério do Meio Ambiente tem, por exemplo, investido, por meio do seu Programa Nacional de Meio Ambiente, na implementação de projetos demonstrativos de desenvolvimento sustentável, com base nos princípios da gestão ambiental descentralizada e da indução do uso sustentável dos recursos naturais.

Podemos também citar o Programa Amazônia Sustentável que está sendo construído em parceria com o Ministério de Integração Nacional, os governos estaduais e a sociedade civil, e que dará novo contexto às ações do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil.

A segunda diretriz é o que chamamos de “transversalidade”. Os professores de todo o Brasil estão bem acostumados com essa palavra, que pode parecer estranha para a maioria das pessoas. Eles conhecem os conteúdos transversais da Lei de Diretrizes da Educação. O meio ambiente é um deles, porque não está preso a uma disciplina mas deve ser ensinado em todas elas. Ou seja, a consciência ambiental do aluno se desenvolve junto com o aprendizado de ciências, matemática, geografia etc. Da mesma forma, queremos que seja compreendido pela sociedade brasileira e situado nas ações do governo: não como a preocupação exclusiva de um setor, um Ministério, mas como um componente de todos os setores.

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A política ambiental do Governo deve estar no Ministério dos Transportes, da Agricultura, de Minas e Energia, em todas as ações de todos os setores. É nesse sentido que o MMA tem trabalhado; e teve boa receptividade para a construção de agendas bilaterais com esses Ministérios.

Dessa forma, poderemos planejar a infra-estrutura pensando desde o princípio nas questões sócio-ambientais e não mais somente quando, uma vez o projeto pronto, o Governo tiver de submetê-lo ao processo de licenciamento ambiental. Essa nova forma de atuar está expressa na decisão de Governo de se rever as propostas da hidrelétrica de Belo Monte, do Gasoduto Urucu/Porto Velho ou ainda nas discussões em torno do asfaltamento da BR 163. Nossos programas dialogam também com o Fome Zero e introduzem também a idéia de um Sede Zero. Não podemos nos dar ao luxo de ver projetos importantes embargados na Justiça por não termos sido capazes de planejá-los de forma a atender a legislação do País.

Além das agendas bilaterais, eu não poderia deixar de citar o Grupo Interministerial de Trabalho sobre o Desmatamento e a elaboração do Projeto de Lei sobre Biossegurança que enviamos ao Congresso Nacional com uma posição de consenso do Governo.

Nossa terceira diretriz é o fortalecimento do Sistema Nacional de Meio Ambiente. O SISNAMA não é apenas um conjunto de instituições e órgãos públicos. É o espaço no qual a participação da sociedade se materializa por meio dos Conselhos de Meio Ambiente. E esse conjunto é o principal guardião das Leis, dos procedimentos e dos conhecimentos sobre o ambiente que o Brasil acumulou nas últimas décadas. É por isso que demos regularidade e construímos uma Agenda comum com Estados e Municípios através da Comissão Tripartite Nacional e que estamos aqui, nesta Conferência, criando as Tripartites Estaduais.

Gostaríamos que esta Primeira Conferência Nacional do Meio Ambiente se consolidasse como uma instância do SISNAMA e que passasse a ter regularidade, como lugar privilegiado de construção da Agenda Nacional de Meio Ambiente.

E isso nos leva à nossa quarta diretriz, que é o controle e a participação social. Acreditamos que “cuidar do Brasil” não é tarefa apenas do Governo, mas do povo inteiro. A participação não é apenas um direito da cidadania, mas um dever constitucional. Não elegemos um Governo para ficar esperando dele todas as soluções. Nesse contexto, o Ministério do Meio Ambiente tem valorizado e investido no bom funcionamento do CONAMA, espaço já consagrado de participação e controle social.

Além disso, reformulou, de forma a ampliar a participação do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, a Comissão para o Desenvolvimento Sustentável, a Agenda 21, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético e criou a Comissão Nacional da Biodiversidade, a Comissão do Programa Nacional de Florestas, além dos GTs da Mata Atlântica e do Cerrado. E já estamos em fase de formação do GT da Caatinga.

A realização desta Conferência atende a todas essas diretrizes, especialmente as duas últimas: controle e participação social e fortalecimento do SISNAMA. É um momento especial de participação do povo brasileiro na definição de uma política ambiental. Foi preparada em todos os Estados, com participação, na sua versão adulta, de cerca de 60 mil pessoas, envolvidas nas nas Pré-Conferências e nas Conferências Regionais e Estaduais, resultando em mais de mil delegados, investidos de grande representatividade.

A versão infanto-juvenil, por sua vez, envolveu cerca de 16.000 escolas – em torno de 6 milhões de estudantes, professores e familiares. As questões que a Conferência tratará surgiram nas diversas regiões do País. São problemas vividos pelo povo brasileiro nas grandes cidades, campos, no litoral, no Cerrado e nas florestas. Suas propostas serão as propostas do povo brasileiro para “cuidar do Brasil”. Ao mesmo tempo, ela fortalece o SISNAMA e a capacidade do Estado de administrar as questões ambientais com um instrumento moderno e eficaz. Por tudo isso, a Conferência é importante. Mas existe nela, também, uma dimensão simbólica, para além da estruturação do Estado e das políticas públicas: ela é o maior esforço até agora realizado de definir uma nova relação do povo brasileiro com a natureza.

Desde o início da formação deste País, mantivemos uma relação dúbia: louvamos a natureza em prosa e verso, exaltamos a beleza e a riqueza de nossa terra, onde, segundo o Hino nacional, os campos tem mais flores e os bosques tem mais vida; mas, ao mesmo tempo, destruímos 93% da Mata Atlântica, desertificamos o Nordeste, poluímos os nossos rios, avançamos de forma avassaladora sobre o Cerrado e estamos ameaçando a integridade da Amazônia de forma preocupante.

É chegada a hora de tomar consciência da realidade, sair da esquizofrenia que opõe o romantismo naturalista ao pragmatismo economicista. No seu discurso de posse, no Congresso Nacional, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva disse uma frase histórica: “este é o momento do encontro do Brasil consigo mesmo”. De fato, no que diz respeito ao meio ambiente, chegou o momento em que o povo brasileiro se encontra com sua própria natureza. Nesse encontro, toma consciência de suas riquezas e potencialidades, mas também dos erros e omissões que se acumularam nestes cinco séculos de formação de nossa nação.

Enfim, o encontro do Brasil consigo mesmo nos revela a extensão de nossos problemas e da nossa responsabilidade. Neste momento, devemos afastar de nossa consciência qualquer ilusão de facilidade, qualquer desejo de soluções mágicas, qualquer tentação de fazer ações espetaculares. Da mesma forma, devemos afastar o desânimo, o desespero de achar que os problemas não têm solução, a mediocridade do administrativismo que vai empurrando os problemas para mais adiante. É hora de “cuidar”. O rumo que tomarmos hoje definirá o nosso futuro. E não apenas o nosso, mas o do Planeta em que vivem 6 bilhões de pessoas. Para o Brasil, é óbvia a necessidade de ir além dos fracos resultados de implementação de tudo o que é discutido na esfera internacional.

Governantes, políticos, sociedade civil organizada e cidadãos comuns estão saturados com a grande profusão de acordos, convenções e organizações que se mostram inefetivos e incapazes de responder às expectativas que se avolumam em torno deles. Não é por acaso que a sensação de muitos dos delegados presentes à Cúpula de Johanesburgo foi de fracasso. Mas uma Conferência como a que estamos realizado traz, consigo, a perspectiva otimista de que o Brasil possa assumir um papel de protagonismo internacional, ao estabelecer políticas públicas concretas e factíveis que se traduzam na implementação dos diversos compromissos internacionais por nós assumidos. Isso constitui o que venho chamando ‘liderar por exemplos’, o que nos posiciona de maneira diferenciada nos foros internacionais e nos permite exercer uma forma de “constrangimento ético” sobre as outras nações e grupos regionais que, a despeito de estarem muito mais capacitados para isso do que os países em desenvolvimento, não partilham desse mesmo esforço. Para isso estamos iniciando duas conferências de meio ambiente, uma delas reunindo a próxima geração, os cidadãos do futuro.

Para encerrar: uma visão do futuro. Só conseguiremos enfrentar e vencer as dificuldades que a realidade nos apresenta se o nosso sonho for mais forte do que esta realidade. E a História está cheia de sonhadores que ousaram fazer com que seus sonhos fossem mais fortes e maiores que a realidade: Martin Luther King, Ghandi, Chico Mendes, Mandela, José do Egito. Foi com esses sonhos e por esses sonhos que deram o melhor de suas vidas, realizando neles os mais belos exemplos da História. Como que mostrando aos realistas que, se existe uma realidade a ser aceita, é o fato de que sempre foram os sonhadores que mudaram e preservaram o que há de melhor em todo o mundo, em todos os momentos.

Marina Silva – Ministra do Meio Ambiente