A biodiversidade em disputa

O manejo, os fluxos e os intercâmbios de recursos biológicos (animais e vegetais) e genéticos e conhecimentos associados a eles, determinados pelas pautas e valores culturais de cada povo, têm sido uma base fundamental do processo de conservação e criação da biodiversidade. Por isto dizemos que ela é protegida pela diversidade cultural, ou em outros termos, que o reconhecimento da sociodiversidade é inseparável da conservação da biodiversidade. Incluem-se aqui tanto populações tradicionais e povos indígenas, quanto segmentos do campesinato, seja o de enraizamento antigo, seja o migrante que, na Amazônia, por exemplo, tem renovado suas tradições culturais, incorporando novos saberes em suas práticas agrícolas e agroextrativistas.

A Convenção sobre Biodiversidade colocou teoricamente a exploração econômica condicionada a sua preservação. Porém, tanto ela, quanto o marco geral da RIO?92 que representa a Agenda 21 destacam o desenvolvimento do mercado – um mercado aberto, sem barreiras – como condição e motor da sustentabilidade. Para o mercado garantir a manutenção da biodiversidade, dois problemas se apresentam: o mercado se interessa por produtos e não por ecossistemas; o tempo das suas estratégias não se adequa ao tempo da sustentabilidade ambiental.

As empresas de biotecnologia que usam como matéria-prima plantas, insetos ou outros animais da floresta, dos quais extraem princípios ativos, não se sentem diretamente responsáveis pela preservação desses ecossistemas.

Mais parecem empreender uma corrida aos garimpos genéticos antes que acabem. A artificialização e homogeneização das sementes com as sementes híbridas e mais recentemente, com a imposição crescente, por parte dos grandes monopólios, das sementes transgênicas, provocam a erosão genética, que coloca em risco a segurança alimentar, e uma nova forma de poluição – a poluição genética – com sérios danos ao meio ambiente.

A mesma Agenda 21 afirma que a promoção do crescimento econômico, sustentado e sustentável, faz parte do combate à pobreza. Poderíamos deduzir dessa afirmação que o mercado garante que os benefícios do acesso aos recursos genéticos da biodiversidade serão repartidos de forma socialmente justa. Não é o que podemos constatar em geral. O mercado continua tendo como referência principal a distribuição de dividendos aos acionistas das empresas, com todas as implicações recorrentes: privilegiamento do curto prazo, migração rápida do capital e dos investimentos, busca permanente de vantagens comparativas.

Do mesmo modo que no século passado, o Estado Ocidental, pressionado pela luta de classes, disciplinou as empresas capitalistas, negociando ou impondo a legislação trabalhista e o estado de bem-estar, hoje, somente o poder público poderia, nos âmbitos nacional e internacional, impor regras a uma economia largamente internacionalizada para que seus lucros sejam revertidos em prol de maior igualdade. Estamos longe disso. O reconhecimento pela Convenção sobre Biodiversidade dos países sobre seus recursos genéticos significa tão somente o direito de negociá-los, não de subtraí-los às regras do mercado tais como definidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), o que deixa as empresas multinacionais com enormes vantagens frente a possíveis estratégias nacionais na caça e na exploração da biodiversidade. Assim, a sociedade assiste e assistirá à sangria não só dos seus recursos, mas de remessas de lucro.

A evolução do trabalho legislativo nesse campo, nestes últimos anos, parece reforçar, salvo raras exceções, essa tendência. A Lei das Patentes (Lei n. 9.279/96), que regula a propriedade industrial no país e a Lei de Cultivares (Lei n.9.456/97), que cria direitos de propriedade intelectual sobre variedades comerciais de plantas, reforçaram a submissão dos recursos biológicos e genéticos à lógica do mercado. Enquanto o Projeto de Lei de Acesso aos Recursos Genéticos e o Estatuto do Índio tramitam com dificuldades, medidas provisórias, tais como a MP n. 2052/2000, que regula o acesso ao patrimônio genético em favor das empresas, atropelam os Projetos de Lei em debate.

O modo como a abertura do mercado brasileiro às sementes e produtos transgênicos está sendo literalmente “empurrada” pelo legislativo e pelo executivo, em particular pelos Ministérios da Agricultura e de Ciência e Tecnologia, é exemplar do modo como prevalecem interesses empresariais, e, no caso, antes de tudo das empresas transnacionais. É bastante reveladora a criação apressada, por Medida Provisória 2.137 de 28 de dezembro de 2000, da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, em que se extrapolam as competências da Comissão, atribuindo-lhe poderes que tendem a ferir a Constituição.1

Na história da humanidade – e isso começou há 10.000 anos, as sementes agrícolas foram produzidas e melhoradas por gerações de camponeses através do mundo, bem como, gerações de sábios indígenas aprenderam a selecionar e manipular ervas medicinais. A detenção coletiva desses recursos e do conhecimento deveria garantir um direito coletivo, mas a legislação não atribui valor a esse trabalho e não o reconhece, o que significa na realidade uma expropriação do saber e dos direitos. A proposta substitutiva do deputado Luciano Pizzatto ao projeto de lei No 2.057/91 que institui o Estatuto do Índio, na mesma linha, não reconhece os direitos coletivos dos povos indígenas.2

Enquanto isso, as grandes monoculturas avançam nos Cerrados e em direção à Amazônia, apoiadas pelas forças conservadoras do Congresso, que tentam a todo custo modificar a legislação florestal em seu favor, propondo a diminuição dos percentuais de áreas de preservação obrigatória.

Neste quadro adverso, no entanto, identificamos alguns avanços e inovações. Elevar a biodiversidade agrícola é fundamental para a sustentabilidade sócio-econômica-ambiental dos agroecossistemas. Baseando-se nesta premissa, vêm sendo desenvolvidas várias iniciativas a partir do final da década de 70, mais especialmente nos anos 90 do século passado. Há múltiplas experiências de conservação e recuperação da biodiversidade no campo das variedades vegetais e de raças de animais utilizados na agricultura, através das Casas de Sementes comunitárias espalhadas pelo país, “feiras de diversidade” para troca de material genético como sementes de essências vegetais, plantas medicinais, além de recursos fitogenéticos, etc. Além do sistema convencional de conservação de amostras nos centros de recursos fitogenéticos da EMBRAPA que precisa ser desenvolvido e mantido, é preciso implementar, a exemplo de experiências em outros países, um sistema de intercâmbio com agricultores (conservação/on farm) para, periodicamente, receberem amostras de materiais coletados, multiplicarem, reincorporem em seus sistemas produtivos, fazerem seleção, melhorarem e retornarem o produto obtido aos centros.3

Atendendo a reivindicação de lideranças indígenas, o governo brasileiro tomou, recentemente, uma importante iniciativa. Apoiou, através do Instituto Nacional de Propriedade Industrial e da FUNAI, um encontro de pajés para a discussão de mecanismos de proteção ao conhecimento tradicional associados aos recursos genéticos no país e formas de repartição de benefícios decorrentes de sua utilização. A Carta de São Luiz, documento de conclusão deste importante evento, que será entregue à Organização Mundial de Propriedade Industrial, destacando um conjunto de propostas significativas, evidencia uma boa posição do país no plano internacional, mas que precisa encontrar correspondência no plano doméstico, com a votação das leis em tramitação, respeitando seu caráter sócio-ambiental.

No campo da diversificação dos sistemas produtivos, destacam-se as iniciativas de projetos dos Sistemas Agroflorestais – SAFs, implementadas com base no princípio da sucessão vegetal e com a incorporação de concepções e práticas agroecológicas. As experiências de manejo comunitário da madeira, em que pesem as dificuldades para que seja reconhecido e para que as comunidades possam comercializar a madeira, constituem-se também em inovação.

Ainda entre as propostas de manejo florestal há que destacar a implantação no Brasil do Forest Stewardship Council – FSC, que pode contribuir para disciplinar a extração da madeira e expansão da monocultura do eucalipto e pino, condicionando-a aos interesses sociais e ambientais.

A instituição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC – tem também um importante significado para a conservação da biodiversidade. É preciso implementá-lo e fortalecê-lo com medidas relativas ao desenvolvimento de planos de manejo e gestão em todas as unidades de conservação; regularização da situação fundiária; incorporação das comunidades no entorno das unidades de conservação como parte da estratégia de conservação in situ da biodiversidade e estabelecimento de sistema de informações e monitoramento das unidades de conservação.

Na Amazônia e na Mata Atlântica, o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais, através de seu componente Projetos Demonstrativos – PDAs, tem permitido a multiplicação de experiências, como acima mencionadas, de conservação da biodiversidade. Em 1996, contrapondo-se ao sistema convencional de crédito que não reconhece o agroextrativismo e vincula o “pacote agroquímico” aos recursos, a Secretaria de Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, com o apoio das organizações de extrativistas, criou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Extrativismo – PRODEX, para o financiamento do agroextrativismo.

Ordenamento territorial

A partir de uma iniciativa do movimento sindical dos trabalhadores rurais na Amazônia, começa a tomar corpo, em 2001/ 2002, o Programa de Créditos Ambientais para a Amazônia – PROAMBIENTE.

Esta proposta de crédito assegura a compensação pelos serviços ambientais prestados pela produção familiar, dentre os quais se insere a conservação da biodiversidade. Ela inclui um Fundo Ambiental e um Fundo de Apoio Técnico.

A título de conclusão, redefinir diretrizes e estratégias, mudando de enfoque programas e políticas, como tem sido debatido em fóruns da sociedade civil, é o ponto de partida para a conservação da biodiversidade genética, de espécies, de ecossistemas. Supõe, por exemplo, incorporá-la de forma explícita em todos os instrumentos de ordenamento territorial e de gestão ambiental, tais como corredores de biodiversidade, zoneamento econômico-ecológico, planos diretores de ordenamento territorial e gerenciamento de bacias hidrográficas.4

A realização da Reforma Agrária em consonância com as características ambientais dos vários ecossistemas e formas tradicionais de uso da terra, a demarcação das terras indígenas e o fortalecimento do Sistema de Unidades de Conservação devem ser parte constitutiva e base das estratégias da macro-política.

1) Carta abaixo-assinado da Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos ao Presidente da República, encabeçada por IDEC, INESC, ESPLAR, GREENPEACE, ACTION AID, FASE, AS-PTA, 23 de janeiro de 2002.

2) Cf. Souza, Hélcio Marcelo. Identidade Brasileira, Estado Plurinacional e Estatuto do Índio: comentários sobre a Proposta de Estatuto do Índio apresentado pelo relator do PL 2.057/91, em dezembro de 2000. INESC. Nota técnica No 039, 13/12/ 2000, Brasília. Mímeo.

3) Gaifami.A & Cordeiro,A. ?Cultivando a diversidade,

Rio de Janeiro, AS-PTA,

Roma; CIC, 1994.

4) Recomendação dos Seminários de Avaliação e Identificação de Ações Prioritárias para a Conservação, Utilização Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade/PROBIO em todos os Biomas, 1999 ou 2000.

Jean-Pierre Leroy
Co-autoria: Maria Emilia Lisboa Pacheco

Fonte: Revista Eco 21, Ano XIII, Número 75, Fevereiro/2003.