A ocorrência de mais um desastre ambiental que resulta na contaminação das águas, nos rios Pombas e Paraíba do Sul nos faz reviver velhos filmes, paradoxalmente em Cataguases, berço de Humberto Mauro e do cinema brasileiro.
O escândalo, as versões governamentais de que foi uma simples fatalidade, a aplicação de pesadas multas e o anúncio de medidas bombásticas que não ultrapassam os limites das burocracias, já não nos impressionam.
Agora a saúde de 4 milhões de pessoas está ameaçada em Minas Gerais e no Rio de Janeiro e um burocrata da Agência Nacional de Águas declara que a solução é apressar o envio das águas contaminadas para o mar. Nada de medidas mais profundas, só perfumaria e muitos holofotes para autoridades. Por ironia do destino, isso acontece no Ano Internacional da Água Doce, justamente na primeira bacia hidrográfica federal onde a Agência Nacional de Águas está implantando a cobrança pelo uso da água.
Há algumas décadas esse mesmo clima pairava na cidade de Caxias (RJ) quando surgiram as primeiras denúncias da disposição criminosa de muitas toneladas de BHC (produto químico proibido) que estava exposto, e contaminando a região e seu entorno, no pátio de uma fábrica do Ministério da Saúde. Pessoas adoeceram e até morreram. O caso se transformou num exemplo histórico de descaso que já dura 50 anos.
Não é diferente do que ocorreu quando a União e as indústrias carboníferas da região de Criciúma foram condenadas a reparar os danos ambientais da extração de carvão que contaminou as águas do sul catarinense. Depois de décadas de descaso, a única providência foi a assinatura de um Decreto, no ano 2000, pelo ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo ex-Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, anunciando a criação de um Comitê de Gestão da Bacia Carbonífera. Ninguém foi punido e nada foi feito de concreto.
No Norte de Santa Catarina, contaminando as águas da Baía da Babitonga, importante reserva da biosfera da Mata Atlântica nas proximidades de Joinville, maior cidade industrial do Estado, empresas de fundição depositam, há mais de 50 anos, nas suas margens, areia de fundição com fenol, um produto que é altamente cancerígeno; e nada é feito contra isso.
No Paraná, na cidade de São Mateus do Sul, uma subsidiária da Petrobrás contamina há anos as águas do Rio Iguaçu com mercúrio, e a única providência adotada foi a assinatura de um termo de ajustamento de consulta junto ao Instituto Ambiental do Paraná que, na prática, dava mais seis meses para que a empresa tomasse alguma providência. Já se passaram 4 e até agora nada de concreto. Na região metropolitana de Curitiba a siderúrgica Gerdau deposita areia de fundição com fenol em seu próprio terreno sem qualquer controle ambiental e nada incomoda o senhor Johanpeter, dono do grupo.
Em São Paulo, há um ano o Governo realiza obras de rebaixamento da calha do Rio Tietê, desrespeitando a licença ambiental usando o material contaminado retirado para aterrar parte da Lagoa de Carapicuíba, um dos municípios mais pobres e populosos da Região Metropolitana. Isso, sem levar em conta que o Estado é governado por um médico que se elegeu prometendo cuidar das pessoas. A quinta maior agência ambiental governamental do mundo, em São Paulo, permanece omissa liberando irregularmente licenças para aterros sanitários sem o menor controle ambiental e nada acontece.
Superexploração das águas minerais pela Nestlé na região de São Lourenço em Minas, descaso de Furnas Centrais Elétricas com o apodrecimento das águas do Lago de Furnas pela emissão de esgotos domésticos e industriais sem tratamento, são alguns dos casos mais gritantes que só serão lembrados se, nessas áreas, ocorrerem desastres como o de Cataguases.
Em 1998, quando o Brasil editou uma pesada lei de crimes ambientais, o Presidente FHC cuidou de editar, também, uma Medida Provisória dando seis anos para as indústrias se adequarem; essa carência vence em 2004. Nada foi feito, a não ser pelas grandes empresas que dependem das regras do mercado internacional onde o desrespeito às questões ambientais representa perda de mercado. Uma no ferro e outra na ferradura.
Esses, e outros exemplos, servem para mostrar que os desastres não são frutos das fatalidades, mas do descuido, da incompetência e da promíscua cumplicidade entre governantes e maus empresários, que só cometem essas ilegalidades por causa da omissão da sociedade.
Carta Social das Águas
Ocorre que parte dessa sociedade já se cansou de esperar das autoridades o cumprimento das leis ambientais e está se unindo para combater a ganância de parte significativa do empresariado que não dá a mínima para a responsabilidade social.
Essas pessoas, cansadas de esperar, agora começam a se organizar: de 16 a 23 de Março deste ano, realizaram na cidade de Cotia, no Estado de São Paulo, o Fórum Social das Águas que aprovou a Carta Social das Águas (www.biodiversidadeglobal.org) na qual fazem um apelo ao Ministério Público Federal – através do Procurador Alexandre Camanho – para que o MP crie forças-tarefa, e aos poderes legislativos, para que constituam comissões de investigação das áreas onde há passivos ambientais históricos, avaliando, analisando e atacando cada um desses casos exemplares in loco, levando os seus responsáveis, inclusive, aos tribunais internacionais.
Enquanto não derrubarmos a impunidade, novas Cataguases aparecerão nas páginas dos jornais e revistas e ocuparão as telas da tevê, sem nada mudar. Felizmente nós acreditamos que um mundo saudável é possível e por isso não desistimos de lutar.
Por Leonardo Morelli
Fonte: Revista Eco 21, Ano XIII, Edição 77, Abril 2003.