O futuro da vida no Planeta

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A distribuição geográfica de cada espécie que habita o nosso Planeta, seja de microorganismos, vegetais ou animais, é determinada por uma série de parâmetros do ambiente, que incluem temperatura, quantidade de luz, umidade, espécies competidoras, comensais etc. Somente encontraremos indivíduos de uma dada espécie em locais que oferecem as condições necessárias e suficientes para a sua sobrevivência, crescimento e reprodução.

Nossa espécie, graças ao tipo e grau de inteligência diferente, constitui uma completa exceção a essa regra, uma vez que, há milhares de anos atrás, aprendemos a modificar o ambiente, adaptando-o às nossas necessidades e conveniências.

Há cerca de 15.000 anos, “inventamos” a agricultura, quando aprendemos a cultivar e modificar geneticamente as plantas de interesse, selecionando-as no sentido de eliminar características de defesa (espinhos, pêlos urticantes, compostos químicos desagradáveis ou tóxicos etc.) e desenvolvendo características de interesse, tais como frutos maiores e mais palatáveis, sementes que permanecem nas espigas até amadurecerem etc.

Os animais foram domesticados, selecionados para redução da agressividade e aumento da docilidade, e, no caso das aves, para aumento do número anual de ovos, etc. Ao longo da nossa história, crescemos em número (somos hoje 6,7 bilhões de pessoas e seremos 9,37 em 2050) e modificamos quase todo o Planeta.

Graças aos avanços científicos, tomamos consciência de que nossa sobrevivência na Terra está fortemente ligada à sobrevivência das outras espécies e que nossos atos, relacionados às alterações no Planeta, podem colocar em risco nossa própria sobrevivência.

O fantástico desenvolvimento da Biologia Evolutiva e dos programas de modelagem aplicáveis à Biologia, permitem avaliar os possíveis efeitos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade. Dessa forma, podemos, a partir dos dados climáticos atuais, deduzir tendências de mudanças, e fazer predições bastante acuradas sobre as possíveis conseqüências para a biodiversidade de uma região e do Planeta.

O estudo, realizado por Marinez Ferreira de Siqueira em colaboração com Andrew Townsend Peterson, da Universidade do Kansas, EUA, foi publicado na revista Biota Neotropica.

Foi estudada a distribuição geográfica de 162 espécies arbóreas do Cerrado brasileiro. O estudo ficou limitado a espécies da distribuição geográfica ampla, utilizando para cada espécie dados obtidos para 30 ou mais localidades de sua ocorrência.

Conhecendo a distribuição geográfica de cada espécie e utilizando a técnica de modelagem de “nicho ecológico”, os autores puderam, com auxílio de modelos de circulação existentes (HadCM2), estimar os possíveis efeitos das mudanças climáticas previstas sobre a distribuição geográfica e mesmo a sobrevivência/extinção de cada espécie.

O estudo envolveu dois cenários previstos para os próximos 50 anos: um mais conservador (aumento de 0,5% de CO2 por ano) e um menos conservador (aumento de 1% de CO2 /ano). Em todos os casos, os resultados indicaram uma redução de, no mínimo, 50% da distribuição geográfica de cada uma das espécies (muitas com redução de mais de 90% da área atual). Considerando o cenário mais conservador, 18 espécies não teriam área habitável; pelo cenário menos conservador, esse número subiria para 56. Estas espécies seriam extintas. A redução acentuada da área coloca em risco a sobrevivência de uma espécie.

Cabe comentar que espécies endêmicas, de distribuição muito restrita – não incluídas no estudo, são muito mais especializadas e, portanto, potencialmente muito mais vulneráveis que as de ampla distribuição. Estas últimas possuem um maior reservatório genético; muitas vezes apresentam ampla “norma de reação”: seu genótipo confere a capacidade de viver e adaptar-se a uma gama mais abrangente de ambientes.

Na Nature (8/1/03) foi publicado um artigo sobre o mesmo assunto (Thomas et al.), mas de abrangência muito mais ampla, cobrindo a maioria dos continentes, incorporando dados de muitos autores e incluindo mamíferos, aves, sapos, répteis, borboletas, outros invertebrados e plantas. A área analisada cobre cerca de 20% da superfície terrestre. Para as análises, os autores cunharam a expressão “envelope climático” , que representa as condições nas quais as populações de uma dada espécie persiste frente a seus competidores e inimigos naturais. A distribuição futura de cada espécie, assim, pode ser estimada supondo a permanência do “envelope climático” atual, podendo ser projetada para o futuro. Três cenários climáticos foram considerados para 2050: 1- mudanças mínimas (aumento médio de temperatura: 0,8º a 1,7ºC e de CO2 de 500ppm por volume), 2- cenário de mudanças médias (aumento de 1,8º a 2,0ºC, e de CO2 500-550ppm/v) e 3- cenários de mudanças máximas esperadas (mais de 2,0ºC e de CO2 maior que 550ppm/v).

As análises indicam que, no caso de mudanças mínimas, podemos esperar a extinção de cerca de 18% das espécies, no de mudanças médias, cerca de 24% das espécies; no cenário de mudanças extremas, devemos esperar que cerca 35% das espécies serão levadas à extinção.

As conclusões dos artigos mencionados podem parecer exageradamente catastróficas. Mas temos que considerar que são projeções feitas a partir de dados atuais, e que oscilações climáticas acentuadas já vêm sendo noticiadas.

Devemos considerar que desde a década de 90, numerosas publicações, em revistas científicas de destaque internacional, têm salientado a necessidade da preservação das áreas nativas, especialmente das florestas tropicais, cuja importância transcende a conservação da biodiversidade no Planeta, em vista de sua enorme importância no ciclo das águas. Na RIO’92, foi dado um destaque especial para a conservação da biodiversidade – o que serviu para desencadear a consciência sobre a interação de todas as espécies (inclusive a nossa) e as conseqüências de possíveis desequilíbrios gerados pelas atividades humanas. Ao contrário da “Revolução Verde”, passou-se a buscar maior produtividade por área nas plantas cultivadas e manejo integrado em muitos casos, com o objetivo de alimentar a crescente população humana, com a menor destruição possível de áreas nativas.

Já no início do Século 21, outra reunião da ONU finalizou as negociações do “Protocolo de Kyoto”, um acordo visando reduzir as emissões de CO2 para a atmosfera, diminuindo o risco de aumento da temperatura.

Por essas razões, é importante que os pesquisadores analisem as tendências atuais e as conseqüências prováveis dos nossos atos enquanto houver ainda uma possibilidade de redução desses efeitos catastróficos.

Helga Winge (Pesquisadora Departamento de Genética – I.B.-UFRGS)
Revista Eco 21, ano XV, Nº 101, março/2005.