Água e Turismo

Podemos reconhecer três grandes domínios na superfície do planeta. O maior deles é a talassosfera, a esfera formada pelas águas marinhas. A segunda é a epinosfera, constituída pela terra firme. A terceira é a limnosfera, reunindo os ecossistemas aquáticos continentais superficiais e subterrâneos.

Há quem diga que a Terra deveria chamar-se planeta Água, já que 70% da sua superfície é dominada pelos oceanos. Em termos de área, de fato, a água é soberana. Em termos de volume e de massa, porém, as rochas duras e fragmentadas em diversos graus prevalecem. Sob a mais profunda fossa abissal existe rocha de alguma forma.

Sabe-se também que a água é de vital importância para os seres vivos, quase todos eles apresentando em seus organismos uma composição semelhante à superfície do planeta: 70% de líquido. E não apenas no corpo a água é vital, senão também que no entorno de cada indivíduo.

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O ser humano e a água

Desde os primórdios do Homo sapiens e mesmo dos hominídeos, a água cumpre várias funções, além de manter o organismo em equilíbrio. Nas antropossociedades de economia extrativista e de vida nômade, os ecossistemas aquáticos marinhos e continentais eram fonte de alimento, meio de higiene e via de comunicação. O naturalista alemão Hermann Burmeister, empreendendo uma expedição científica no Brasil do Século 19, escreveu que os índios eram anfíbios, pois adoravam viver na água dos rios.

Para as antropossociedades pré-urbanas de economia rural e vida sedentária, a água, além dos usos anteriores, servia também para a irrigação agrícola e dessedentação do gado. Por sua vez, as sociedades históricas viveram em estreita dependência da água, seja drenando seu excesso, seja irrigando os solos áridos para a agropecuária. Basta examinar as civilizações mesopotâmica, egípcia e andina em suas origens.

Por mais que os ecossistemas aquáticos marinhos e continentais fossem usados para a recreação, não se pode falar em seu aproveitamento para o turismo, visto que esta atividade nasce no ocidente, no Século 19.

Em O Território do Vazio, um livro que já se tornou clássico, Alain Corbin demonstra que a praia deixou de ser um lugar de desembarque e de pescadores e passou também a ser apreciada pela aristocracia e pela elite intelectual como um território a ser freqüentado para banhos, caminhadas, cavalgadas e temporadas. A praia é criada pelo imaginário europeu no final do Século 18 e merecerá obras literárias de prosa e poesia. Esta atração se estende por todo o Século 19 e chega aos nossos dias.

Há, porém, uma diferença significativa entre a maneira de olhar a praia nos Séculos 18, 19 e 20 em comparação ao Século 21. O ponto de encontro entre a talassosfera e a epinosfera foi incorporado à cultura européia como local para tratamento de doenças. Proliferaram as praias medicinais por toda a Europa e o mundo europeizado.

No Brasil, havia praias cercadas, com hotéis em que pessoas enfermas se hospedavam para recuperar a saúde. Acreditava- se que o sal e a água fria e limpa lavavam as doenças do corpo e da alma. Também os rios adquiriram este significado no imaginário ocidental. Gilberto Freyre, no intuitivo livro Nordeste, de 1937, analisa a relação da lavoura canavieira com as águas continentais. Diz ele que, na fase do engenho, que perdurou do Século 16 ao final do Século 19, o ser humano aceitou os rios com suas curvas e caprichos, sem macular em demasia suas águas. Nelas, banhavam-se nuas moças brancas e doentes pelo confinamento residencial e pelo uso de roupas inadequadas. 

As casas, prossegue ele, tinham suas frentes voltadas para os rios, com trapiches por onde desembarcavam seus proprietários e agregados bem como visitantes.

Era possível beber de suas águas sem filtração ou fervura, ainda que houvesse uma verdadeira aversão pelas águas paradas das lagoas e dos brejos. O advento da usina e do engenho central movidos a vapor, mudou a relação da agroindústria sucro-alcooleira com os rios. Pouco a pouco, as casas lhes viraram as nádegas, que passaram a despejar nas águas a calda quente e fétida resultante da produção do açúcar e do álcool.

As águas e o turismo

Só final do Século 19 e princípio do Século 20, as águas, já dessacralizadas pela sociedade industrial, passam a despertar interesse recreativo e turístico. Marcos Polette explica como um rio, uma lagoa e uma praia passam de paraíso a inferno. Primeiramente, aparece um ricaço num ecossistema aquático rústico, habitado, no máximo, por comunidades tradicionais de pescadores. Suas belezas naturais motivam-no a conseguir um terreno por meios lícitos ou ilícitos, onde constrói uma casa para os finais de semana e para os meses de veraneio.

O encanto do local leva-o a convidar amigos para passarem fins de semana ou temporadas. Esses também se interessam em adquirir um terreno e construir uma casa. O processo se repete e se multiplica. Os intrusos passam, então, a pleitear do poder público a pavimentação da estrada de acesso para facilitar a viagem. Por ela começam a chegar aqueles que pretendem passar apenas um dia. Para atendê-los, aparecem os construtores de pousadas e de hotéis. Casas mais simples passam a ser construídas. A economia das comunidades tradicionais é desmantelada. Os primitivos moradores são empregados pelos donos de mansões, pela rede hoteleira e pelo comércio ou são expulsos do lugar.

Assim, o turismo autofágico acaba subtraindo dos ecossistemas aquáticos marinhos e continentais a beleza que estimulou a sua ocupação. Depois de tornar insuportável o atrativo, os pioneiros ricos saem à procura de outros lugares para iniciar o mesmo processo. Viveram esta trajetória as praias de Tijuca, de Leblon e Ipanema, de Copacabana, de Cabo Frio e Búzios, de Guarapari e arredores, da Bahia e do Nordeste, de um modo geral. O mesmo sucedeu com as lagoas da Região dos Lagos do Estado do Rio e com quase todos os rios.

O ecologismo, o turismo e as águas

A crise ambiental da atualidade está levando à construção de um novo paradigma ou a uma nova atitude diante da natureza. O ecologismo é que melhor a expressa. Praias, rios e lagoas não são apenas as bordas do mar ou as margens que canalizam um curso d?água ou que encerram uma porção dela. São ecossistemas em que a água, posto que vital, é um dos componentes de um todo complexo incluindo solo, subsolo, estrutura geológica, clima e seres vivos. Como ensina a ecologia, os ecossistemas, por mais generosos que sejam, têm limites. Se estes são infringidos até o ponto de retorno possível, eles tendem a restabelecer o equilíbrio. Caso contrário, é preciso a intervenção humana para restaurá-los.

Em resumo, os ecossistemas aquáticos marinhos e continentais são finitos e devem ser respeitados na sua singularidade. Eles não são depósito de lixo e esgoto. Habitam-no plantas, animais e outros organismos indispensáveis à sua saúde.

Estamos longe ainda de observar os preceitos do novo paradigma. A maioria das pessoas continua deixando a ética na ponta de um pau, como fez Macunaíma ao deixar a Amazônia, quando colocam os pés numa praia, num rio ou numa lagoa. Diante de nós, vislumbramos dois horizontes. Um deles foi bem descrito por Ignácio de Loyola Brandão no romance Não Verás País Nenhum, com praias cercadas e interditadas para o banho, devido à sua poluição, e com rios e lagoas contaminados e secos. O outro consiste no esforço de mudanças culturais, de proteção aos ecossistemas aquáticos e de restauração dos que foram degradados por um turismo consumista e predatório.

Por Arthur Soffiati
Fonte: Revista Eco 21, Ano XIII, Edição 77, Abril 2003.