Sede Zero – Um Desafio Hídrico para o 3.° Milênio

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Num contexto em que se está divulgando com tanta intensidade o programa fome zero como meta governamental prioritária de erradicação da fome no Brasil, é mister alertar-se a população para o fato da grande importância da água na agricultura como base da produção alimentar, e que a própria natureza sinaliza para a inevitável e crescente escassez, a passos largos, deste insumo essencial à manutenção da vida na Terra. Este fato aponta para a necessidade da divulgação de um outro programa, sede zero, para despertar na população a urgência da necessidade de adoção de medidas que resultem no uso racional da água potável.

A compreensão da vida, desde uma simples célula até um complexo ecossistema, se constituirá num universo analítico para o entendimento da dinâmica ambiental sob a ótica da preservação dos recursos naturais com ênfase nos recursos hídricos. A natureza das ocorrências físicas, químicas e biológicas existentes aquém de uma célula e além da biosfera, fica à parte do que se apresenta na Figura 1. A questão fundamental é a disponibilidade de água em termos de qualidade e em quantidade, tendo em vista o seu suprimento no mundo, no sentido de favorecer a estabilidade ecológica requerida para o desenvolvimento sustentável de um programa de sede zero para as populações e comunidades nos diversos ecossistemas.

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Figura 1. Aspecto conceitual dos seres vivos na complexidade ambiental, desde uma simples célula até a biosfera dentro de um ecossistema Fonte: Rodrigues (2000)

As necessidades humanas podem ser agrupadas numa ordem lógica de priorização no sentido do seu atendimento quanto aos aspectos fisiológicos, de segurança, sociais, de auto-estima e de auto-realização. A partir de uma exposição e classificação didática, algumas são básicas ou essenciais além de determinantes para a sobrevivência e perpetuação da espécie. Outras também são importantes; no entanto, dependem dos referenciais de valores do indivíduo e da comunidade onde ele habita, do poder aquisitivo, dos usos e costumes e dos aspectos culturais, os quais podem ser padronizados em diferentes níveis de adoção.

Em geral, essas necessidades podem ser ordenadas na seguinte seqüência, segundo os estudiosos: comer, beber, sexo etc (fisiológicas); trabalho, habitação, menos risco etc (segurança); família, igreja, amigos, clubes etc (sociais); auto-respeito, autonomia, status, aprovação etc (auto-estima) e, por fim, a auto-realização. A pirâmide social configurada por arranjos de blocos sobrepostos das necessidades humanas (Figura 2) facilita o entendimento da complexidade das comunidades nos ecossistemas.

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Figura 2. Arranjo social das necessidades humanas de acordo cm os padrões pessoais e sociais.

O destaque da necessidade de beber listada como prioridade das funções fisiológicas ou essenciais da espécie humana e, por extensão, de todos os seres vivos, evidentemente inclui a demanda por água como elemento básico desde uma célula até a biosfera.

Desta forma, entende-se que a temática sede zero merece atenção especial no mundo e no nosso País, principalmente em regiões em que a irregularidade espaço-temporal da distribuição das precipitações pluviométricas é uma realidade natural diante de séries históricas dos dados climáticos.

Entre as catástrofes que atingem e oprimem um ecossistema, a escassez ou a falta de água potável é a que mais penaliza as populações humanas. A fauna e a flora das regiões áridas e semi-áridas sofrem com os déficits hídricos, com a distribuição irregular da pluviosidade e com a má qualidade dos mananciais em decorrência da poluição nos diferentes níveis de contaminação.

A competitividade pelo uso dos recursos hídricos está caracterizada por três grandes demandas: uso urbano ou doméstico, uso industrial e uso agrícola, estimado e ilustrado na Figura 3.

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Figura 3. Distribuição do consumo de água no mundo, segundo as estatísticas divulgadas

No Gráfico 1 apresenta-se a evolução temporal do consumo anual de água no mundo, desde 1900 até o ano 2000. A parcela de perdas nos reservatórios é crescente desde o início das obras hidráulicas das grandes barragens nos cursos de água antes de 1960 e, com a expansão dos espelhos de água, tem ocorrido incrementação significativa nos volumes evaporados. No ano 2000, por exemplo, o volume de perdas nos reservatórios, visualizado na escala do eixo vertical, em km3, foi aproximadamente 2/3 do consumo de água no setor urbano no mundo.

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Gráfico 1. Valores dos volumes de água evaporada e consumida no mundo desde de 1900 até o ano 2000 nos diferentes setores

É interessante mencionar que, quando as estatísticas apontam e quantificam o consumo de água de 70% destinados à agricultura irrigada (Figura 3), nesse total estão incluídos os volumes de água armazenados para a geração de energia elétrica, que nem sempre são utilizados nos perímetros irrigados, e as perdas por evaporação nas superfícies livres dos grandes reservatórios e, ainda, a vazão ecológica para manutenção da fauna e da flora à jusante das represas para permitir certo gradiente hidráulico no fluxo de água na calha viva dos rios, evitando o avanço das águas marinhas nos últimos trechos dos cursos. Estima-se que a somatória da água evaporada ao longo do Rio São Francisco e nos lagos artificiais da sua bacia hidrográfica seja de 310 m3 por segundo.

Conscientes de que a agricultura irrigada é, de fato, responsável pelo maior percentual de consumo das reservas hídricas, os órgãos públicos, empresas privadas e a pequena agricultura familiar que lidam com o agronegócio, devem evitar os desperdícios, que comprovadamente são elevados em quase todos os métodos e sistemas de irrigação. No Brasil, segundo as pesquisas de avaliação e parametrização dos sistemas de irrigação em operação, a eficiência global do uso de água está em torno de 30%, implicando num desperdício global de 70% dos volumes de água derivados dos reservatórios, ou seja, de cada volume de 1.000 L que sai de um manancial, 700 L não são utilizados pelas culturas.

A resolução específica de suprir a carência de alimentos em uma ecorregião fisiográfica, como propõe o programa fome zero, tem solução mais simples que a dessedentação das populações, pois a provisão alimentar pode ser possível por meio de importação e transporte dos gêneros de primeira necessidade e de outros produtos de consumo complementar. Já o transporte de água a longas distâncias apresenta custos financeiros elevados em razão das obras hidráulicas, podendo gerar, também, conflitos sociais devido à disputa pelos recursos hídricos nos seus diferentes setores de uso. Como exemplo, menciona-se a transposição de bacias hidrográficas entre regiões, mesmo próximas que, além de gerar polêmicas, inevitavelmente causa transtornos ecológicos, às vezes, irreversíveis à natureza.

A degradação dos mananciais devido às ações antrópicas só pode ser minimizada por meio de processos de educação hídrica das populações usuárias de água nos diferentes setores. Assim, pode-se implementar um programa de sede zero com perspectiva de sustentabilidade dos recursos hídricos.

As providências úteis para evitar a catástrofe da sede requerem ações consecutivas na seguinte ordem: diagnóstico ambiental, tomada de dados para pesquisa, análise e interpretação de dados, resultados gerados e, por fim, tomada de decisão. O monitoramento dos ecossistemas deve ser seguido de forma sistemática até que novos paradigmas apontem outro desafio.

No memorial das civilizações, a tomada de decisão sempre se constituiu na condição “sine qua non” e no fator decisivo para a resolução de problemas coletivos. Esta regra deve ser válida para as gerações do terceiro milênio que estão nas margens dos rios secos e no entorno dos mananciais em extinção.

Temos que entender, também, que das muitas tentativas humanas de se criar um método pedagógico perfeito na busca de soluções holísticas, o resultado tem sido uma frustração nas empreitadas da história dos povos e nações. No entanto, não há como recuar nos empreendimentos voltados para a preservação dos recursos hídricos pois, do contrário, ocorrerá a devastadora calamidade da sede em várias partes do mundo.

Conclusão

Apesar de tanta água na Terra, pode-se constatar que a soma da enorme massa dos grandes, médios e pequenos corpos hídricos, torna-se em miragem quando diferenciados e quantificados na forma reduzida de seus volumes existentes com base de cálculo global representado por 10.000 litros como o todo.

Ter-se-ia, então, como resultado, o quadro abaixo:

Distribuição Volume Percentual
água salgada  9.747 litros  97,47%
pólos e geleiras 174 litros 1,74%
água subterrânea 76 litros 0,76%
água da superfície 3 litros 0,03%

Aurelir Nobre Barreto – Engenheiro agrônomo M. Sc. Irrigação e Drenagem, pesquisador da Embrapa Algodão