O presente texto aborda de forma introdutória dois temas normalmente pouco tratados no Pantanal. O primeiro tema refere-se à agricultura familiar, já o segundo, ao produto de uma política de reforma agrária implementada pelo Estado, os assentamentos rurais. Tratam-se de assuntos dificilmente abordados há cerca de 25 ou 30 anos atrás mas que na atualidade tornaram-se indispensáveis em reflexões acerca do desenvolvimento desta região sob a perspectiva territorial.

No Pantanal, os motivos para a sensível dificuldade na incorporação destes temas encontram-se relacionados ao fato da agricultura familiar nunca ter encontrado maior visibilidade, apesar do papel social e econômico que desempenhava na região. Neste aspecto, a agricultura familiar desenvolvida pelas populações tradicionais pantaneiras (moradores das colônias, pescadores e indígenas), mesmo exercendo tradicionalmente uma importante função no abastecimento alimentar das cidades de Corumbá e Ladário, assim como na própria manutenção de algumas fazendas de gado, e demais comunidades da região, não foi percebida e valorizada pelo poder público e pela sociedade local. Prevaleceu portanto a importância política e econômica destas fazendas que, após a ocupação de terras anteriormente pertencentes aos povos indígenas, fundamentaram uma estrutura social a elas circunscrita. Assim, em torno destas propriedades, estruturaram-se categorias como peões, vaqueiros, capatazes e gerentes de fazenda, trabalhadores rurais que contribuíram efetivamente para o desenvolvimento da pecuária de corte, principal atividade econômica do Pantanal. Neste aspecto, diante das imensas distâncias até as cidades e das dificuldades no deslocamento inerentes à própria região, a produção de alimentos básicos mostrou-se de fundamental importância para a manutenção destas propriedades.
Portanto, até recentemente, refletir sobre a agricultura familiar no Pantanal correspondia a uma ação impraticável e de fraca repercussão. Consequentemente, tornou-se mais propício nas reflexões sobre o Pantanal, destacar a figura do trabalhador rural, aquele mesmo que, na atualidade, juntamente com trabalhadores oriundos de outras regiões do país, vêm contribuindo para a conformação da agricultura familiar de assentamentos rurais nesta região.
A origem de assentamentos
Durante o ano de 2002, a Embrapa Pantanal desenvolveu uma ação de pesquisa denominada Pré-diagnóstico Participativo de Agroecossistemas dos Assentamentos Paiolzinho e Tamarineiro II, visando o aprofundamento de informações acerca dos assentamentos rurais de Corumbá e seus impactos regionais. Esta ação de pesquisa, baseada na metodologia do Diagnóstico Rural Participativo de Agroecossistemas, teve como objetivo central a busca de informações sócio-econômicas e ambientais, assim como o planejamento participativo de ações que pudessem contribuir no desenvolvimento integrado e sustentável local. As informações obtidas neste estudo apontam para os principais elementos que motivaram a criação de oito assentamentos rurais neste território, correspondendo ao número de 1.158 famílias assentadas, cerca de 5,2 % de sua população total (tabela 1). Neste sentido, mais do que um fato localizado, esta forma de ocupação do território está associada a profundas transformações em curso naquele contexto, em diversas regiões do país e, em especial, no Estado de Mato Grosso do Sul.
Tabela 1. Caracterização dos assentamentos de Corumbá e Ladário sob acompanhamento da Unidade Avançada do Incra.
Assentamento | Famílias | Área (ha) |
1. Tamarineiro II | 319 | 10.635,58 |
2. Paiolzinho | 070 | 1.196,75 |
3. Taquaral | 394 | 10.013,24 |
4. Tamarineiro I | 126 | 3.812,26 |
5. P.A. 72 | 085 | 2.343,41 |
6. Urucum | 087 | 1.978,93 |
7. Mato Grande | 050 | 1.264,35 |
8. P.A.R. bacaina | 027 | 761,55 |
Total | 1.158 | 32.006,07 |
Fonte: Unidade Avançada do Incra, adaptado por CURADO, F. (2003).
Num primeiro aspecto, o processo de modernização da agricultura levado a cabo pelo intenso aporte financeiro por parte do Estado nas décadas de 60 e 70 e que garantiu a tecnificação e quimificação no meio rural, mostrava sinais, já nos anos 80, de profundas mudanças sócio-econômicas e ambientais percebidas no acirramento dos conflitos pela terra, na expulsão de pequenos proprietários familiares, no aumento da concentração fundiária, na desestruturação das relações de trabalho, e na exploração inadequada dos recursos naturais com a degradação de imensas extensões de terra (Graziano Neto,1985; Delgado, 1985; Martine & Garcia, 1987).
O segundo aspecto que contribuiu para o surgimento dos assentamentos rurais está relacionado à mobilização e organização dos trabalhadores rurais no interior dos movimentos sociais. O que aconteceu de modo especial no Mato Grosso do Sul foi a confluência de diferentes expressões do movimento de luta pela terra em ocupações, acampamentos, e assentamentos rurais. Neste sentido, reuniram-se, nestas experiências, desde trabalhadores rurais oriundos das lutas contra barragens, até antigos “brasiguaios” que lutavam pela (re)inserção sócio-produtiva no país. Estes atores sociais, contando com o apoio de diversos mediadores, dentre os quais, a Comissão Pastoral da Terra, foram responsáveis pelo processo de territorialização do Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST no estado. Todos estes fatores contribuíram, conjuntamente, para a conformação de trajetórias distintas de luta pela terra e foram verificadas em diversos relatos orais sobre as experiências de assentamentos rurais em Corumbá. Vários agricultores assentados desta região passaram por diferentes acampamentos no Mato Grosso do Sul, buscando a incorporação no Programa Nacional de Reforma Agrária.
De modo específico, na região de Corumbá, outro fator parece ter igualmente contribuído para a formação progressiva de novas demandas por terra, gerando a mobilização necessária para a ocupação deste território mediante a criação de assentamentos rurais pelo governo federal. Este fator corresponde à grande enchente de 1974 e, com ela, a inauguração de um novo ciclo de cheias que provocou intensas transformações sócio-econômicas no Pantanal, dando início a um processo de declínio da atividade pecuária nesta região. Com esta enchente, várias fazendas que ocupavam anteriormente áreas secas foram tomadas pelas águas, inviabilizando, em alguns casos, a continuidade desta atividade. Em conseqüência disto, muitos trabalhadores rurais migraram para as cidades de Corumbá e Ladário. O período de 60 e 70, segundo o Plano de Conservação da Bacia do Alto Paraguai – PCBAP, mostrou um acréscimo na ordem de 23.397 habitantes em Corumbá. Por outro lado, o período seguinte, de 70 a 80, evidenciou um decréscimo de 742 habitantes neste mesmo município. Apesar deste decréscimo, a taxa de urbanização manteve-se crescente no período citado, chegando a 86,7%, em 1991. Este quadro, associado aos reflexos das mudanças provocadas pelo Estatuto do Trabalhador que estendeu ao trabalhador rural os direitos concedidos ao trabalhador urbano, promoveu a alteração do elemento estruturante das relações sociais em torno da fazenda pantaneira, ou seja, a cordialidade, que fundamentava a relação patrão e empregado nestas unidades.
Diante do exposto, duas frentes migratórias deram o contorno populacional dos assentamentos rurais de Corumbá e região nas últimas décadas: de um lado, trabalhadores rurais (antigos bóias-frias, assalariados, arrendatários, etc.) migrantes expropriados pela modernização do campo (monocultura da soja), organizados em torno do MST, e que estabeleceram vários acampamentos na região sul do estado (Dourados, Caarapó, Mundo Novo, Itaquiraí, etc) ao longo das décadas de 80 e 90. A outra frente, correspondeu à própria população pantaneira (trabalhador rural das fazendas), assim como ex-proprietários expulsos pelas águas, antigos posseiros e arrendatários que se tornaram, neste contexto, novos demandantes por terras mediante o processo de reforma agrária, impulsionando, consequentemente, a criação dos assentamentos rurais na parte alta de Corumbá.
Fernando Fleury Curado (fcurado@cpap.embrapa.br) é pesquisador da Embrapa Pantanal na área de sócio-economia.