Na América Latina o conceito de sociedade multicultural pode aludir a realidades verdadeiramente díspares. Não é a mesma coisa pensar no pluralismo cultural de uma cidade como Buenos Aires, e no de Quito, Lima, Quetzaltenango, Oaxaca ou La Paz.
No primeiro caso, as culturas que ali se desenvolveram têm uma origem e uma marca predominantemente européia, e engrandeceram uma identidade crioula para a qual contribuíram as identidades dos imigrantes italianos, espanhóis, franceses, ingleses e outros, em termos de um alto grau de respeito recíproco. Pode-se notar que esta identidade foi forjada à custa do sacrifício das populações originárias, de cujas identidades não ficaram nem sequer vestígios, e da segregação de outras populações migrantes tão importantes como a boliviana ou a paraguaia.
Por outro lado, o mosaico sócio-cultural das outras cidades que mencionei está fortemente impregnado da presença das diferentes coletividades indígenas originais, e o diálogo intercultural – se é que se pode falar de algo assim – se deu entre elas e a porção mestiça e/ou crioula que deteve as principais situações do poder local.
De qualquer maneira, em ambos os casos é possível falar de sociedades multiculturais, pois se pode verificar o fato de que coletividades pertencentes a diferentes padrões culturais coexistem em seus respectivos âmbitos territoriais, sejam quais relações ocorram entre elas. Independentemente de quão remotos ou recentes sejam suas origens, no contexto das relações interculturais cotidianas, em nossas sociedades são reproduzidas as imposições, traumas e complexos herdados da história.
No melhor dos casos, a reivindicação de traços culturais indígenas por parte da coletividade mestiça ou do calendário oficial de eventos não vai além de se assumir aspectos meramente folclóricos e formais, reproduzindo as relações de poder e o etnocentrismo com o qual as nações latino-americanas projetaram o regime colonial ao se tornarem independentes da metrópole.
Por isso, o conceito de interculturalidade, diferentemente do de multiculturalidade, traz uma carga irrefutável de valores, relações e ideologias. Este conceito refere-se ao grau de verticalidade ou horizontalidade do diálogo e das relações entre os povos e suas culturas na difícil estruturação de nossas sociedades como sociedades plurais, nas quais se reconhece o direito de todos os seus componentes a defender e cultivar suas visões cosmológicas particulares e suas próprias tradições sem menosprezo e com total respeito pelas demais.
As condições nas quais se dão as relações interculturais têm se traduzido, em geral, na violência contra os povos indígenas em suas diversas expressões: desde os massacres genocidas, o desapreço, a marginalização, a limitação de oportunidades, as agressões físicas e morais, a exploração econômica, o trabalho infantil, a escravidão sexual, até a compaixão e o paternalismo que negam a dignidade humana e revelam a profunda ignorância sobre o muito que se tem para aprender das culturas indígenas. De fato, as tradições comunitárias dos povos indígenas têm demonstrado um vigor e uma coerência muito superiores não apenas para organizar a convivência social de maneira mais eqüitativa e solidária, mas também para garantir a harmonia entre o homem, sua comunidade e a natureza de uma maneira mais respeitosa e sustentável.
Por isso, quando pensamos na gestão pública que deveria corresponder às sociedades multiculturais, nossas idéias são referentes, primeiramente, à necessidade de reconstruí-las em termos de um equilíbrio de poder mais horizontal e respeitoso; em segundo lugar, ao reconhecimento do importante aporte que nossas culturas, até hoje subjugadas, podem dar para o estabelecimento de melhores condições de convívio para todos.
Com respeito ao primeiro aspecto, é evidente que não serão as condições do mercado nem a inércia das circunstâncias atuais que gerarão espontaneamente os equilíbrios desejados. Portanto é preciso projetar políticas públicas expressas e consensuais que identifiquem as mudanças necessárias a curto, médio e longo prazo, identificando as tarefas, as responsabilidades, os atores e os recursos que as tornem possíveis. Quanto ao segundo, não é suficiente só uma abertura por parte das instituições para reconhecer, compreender e aplicar de maneira criativa os múltiplos ensinamentos que derivam da visão cosmológica de nossos povos. Em ambos os casos, estamos falando de sistemas de valores que devem ser descobertos e compreendidos positivamente e sem preconceitos.
Nenhum esforço institucional, por mais importante que seja, será suficiente se o conjunto da sociedade não assumir este desafio e o tornar realidade. Não basta que nos convoquem de tempos em tempos para votar, nem que nos convidem a fazer parte de instâncias ou organismos onde nossa voz se dilui no mar da burocracia. O que faz falta é a ampliação e a qualificação dos espaços de participação e dos mecanismos das democracias latino-americanas. Trata-se de requisitos que hoje são tão importantes como a reforma do sistema educacional ou a regulamentação dos meios de comunicação. O denominador comum destas tarefas é o conceito de responsabilidade pública, em suas dimensões institucional e social.
Fonte: Revista Eco 21, ano XV, Nº 98, janeiro/2005.
Por Rigoberta Menchú – Líder indigenista, Prêmio Nobel da Paz (1992)