Os trópicos são o suporte da diversidade biológica do planeta por sua incomparável multiplicidade de ecossistemas. E a maioria dos países do Terceiro Mundo está situada precisamente nos trópicos. Mas, a diversidade biológica enfrenta um processo de rápida destruição, devido, entre outras coisas, a megaprojetos financiados internacionalmente, como a construção de represas, diques e rodovias, a exploração de minas ou a criação de empreendimentos destinados à piscicultura. Também tem sua parte a ofensiva tecnológica e econômica para substituir a diversidade pela homogeneidade na silvicultura, agricultura, pesca e criação de animais.
A biodiversidade é um recurso das pessoas. Enquanto o mundo industrializado e as sociedades ricas voltam as costas para a biodiversidade, os pobres no Terceiro Mundo continuam dependendo dos recursos biológicos para sua alimentação e nutrição, para o cuidado com a saúde, para a energia, vestimenta e moradia. A biodiversidade não é, como a atmosfera ou os oceanos, um bem comum no sentido ecológico. Ela existe em países específicos e é usada por comunidades particulares. É global apenas em seu papel de matéria-prima para as corporações multinacionais.
A biopirataria é o desvio ilegal das riquezas naturais (flora, águas e fauna) e do conhecimento das populações tradicionais sobre a utilização dos mesmos. É um mal que abate e enfraquece cada vez mais o nosso país e que termina ignorando sua soberania territorial, incluindo-se a perda de um imprescindível patrimônio genético e biosférico, ainda longe de ser mensurável do ponto de vista econômico, mas que já é explorado pela ganância internacional.
Assim, a biodiversidade passa de um bem comum local para uma propriedade privada cercada e fechada. De fato, o cercado dos bens comuns é o objetivo dos direitos de propriedade intelectual e está sendo universalizado por meio dos tratados sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio, da Organização Mundial do Comércio (OMC), e de certas interpretações da Convenção sobre Biodiversidade.
Em várias regiões da Amazônia, pesquisadores estrangeiros desembarcam com vistos de turista, entram na floresta, muitas vezes, infiltrando-se em comunidades tradicionais ou em áreas indígenas. Estudam diferentes espécies vegetais ou animais com interesse para as indústrias de remédios ou de cosméticos, coletam exemplares e descobrem, com o auxílio dos povos habitantes da floresta, seus usos a aplicações. Após obterem informações valiosas, voltam para seus países e utilizam as espécies e os conhecimentos das populações nativas para isolarem os princípios ativos.
Ao ser descoberto o princípio ativo, registram uma patente, que lhes dá o direito de receber um valor a cada vez que aquele produto for comercializado. Vendem o produto para o mundo todo e até mesmo para o próprio país de origem, cujas comunidades tradicionais já tinham o conhecimento da sua utilização.
No Estado do Amapá existe uma Lei Estadual de Proteção e Acesso à Biodiversidade do Amapá, a Lei 0388/97. A lei disciplina o acesso aos recursos naturais do Estado, controlando toda e qualquer pesquisa sobre os recursos naturais no Amapá.
Os estados brasileiros que mais exportam plantas medicinais são: Paraná, Bahia, Maranhão, Amazonas, Pará e Mato Grosso. Dentre as espécies mais procuradas estão o cumaru, o guaraná, a ipecacuanha, o barbatimão, o ipê-roxo, a espinheira-santa, a faveira, a carqueja, o absinto selvagem, a babosa. Algumas dessas espécies encontram-se ameaçadas de extinção.
Primordial na privatização da biodiversidade são a desvalorização do conhecimento indígena, o deslocamento dos direitos locais e, simultaneamente, a criação de direitos monopolizadores para o uso da biodiversidade através da reivindicação de supostas inovações introduzidas pelas transnacionais. As corporações estão usando os direitos de propriedade intlectual para piratear o conhecimento indígena e a biodiversidade das comunidades do Terceiro Mundo. A biodiversidade é o capital natural das pessoas pobres e a personificação da diversidade cultural. Deve continuar sendo livre para que as sociedades sejam livres.
Fazendo-se valer da carência social e econômica dos mateiros, índios e matutos – gente que conhece como a palma da mão os mistérios e riquezas da natureza – buscam e orientam a exploração e o tráfico de mudas, sementes, insetos e toda a sorte de interesses em nossa farta biodiversidade.
Um, dos muitos fatores, que torna mais grave esta delicadíssima questão da biopirataria no Brasil é o crescente avanço da biotecnologia no primeiro mundo ante um país que continua fazendo acanhados e parcos investimentos nos setores de educação, ensino e pesquisa.
O estudo do tema da biopirataria no Brasil permite dois grandes enfoques que são complementares. Um diz respeito às ações clandestinas de retirada de recursos de nossa biodiversidade. Em geral associa-se esses atos à pilhagem promovida no contato direto com comunidades que detêm conhecimento original sobre propriedades de plantas ou animais.
O segundo enfoque traz à tona outra faceta da biopirataria, repleta de ambigüidades e zonas de sombras, relacionada à maneira pela qual o Brasil, por meio de seus poderes públicos, tem tratado a questão da regulação do acesso à biodiversidade. Esse enfoque ajuda a entender embates que se dão principalmente nos planos político e institucional, caracterizando subtrações e prejuízos ao patrimônio genético do país, muitas vezes sob abrigo oficial ou oficioso.
Quando a Rio 92 aprovou a Convenção sobre Diversidade Biológica, estabeleceu-se um marco no reconhecimento do caráter estratégico dos recursos de biodiversidade e da necessidade de regular o seu uso, para o bem da humanidade e benefício de cada nação detentora. O Brasil deveria, a partir daí, ter o maior interesse em elaborar a legislação nacional sobre o assunto, dada sua privilegiada biodiversidade. Além disso é historicamente biopirateado e uma lei adequada seria o primeiro passo para estancar a sangria.
Assim, a biopirataria não é hoje fruto apenas da falta de fiscalização e de legislação. Ela resulta também de uma postura equivocada do atual governo sobre a utilização e conservação do gigantesco patrimônio natural do país – como florestas, água e solo – impedindo que a sociedade brasileira faça dele alavanca eficaz para um desenvolvimento que proporcione geração de emprego, renda e melhoria da qualidade de vida para todos.
Alguns lembretes:
– a retirada ilegal de madeira e produtos da floresta para fins comerciais é um crime previsto na Lei de número 9.605/98, de crimes ambientais.
– os produtos amazônicos com reconhecido poder medicinal mais procurados pelos piratas da floresta são a casca da Jatobá, casca do Ipê-roxo, folha da pata-de-vaca, cipó da unha- de-gato, casca da canelão e da catuaba. De acordo com estudos realizados por pesquisadores brasileiros foram identificadas 105 espécies medicinais, que estão entre as mais visadas na Amazônia.
– no mercado mundial de medicamentos (US$ 320 bilhões anuais), 40% dos remédios são oriundos direta ou indiretamente de fontes naturais (30% de origem vegetal e 10% de animal). Estima-se que 25 mil espécies de plantas sejam usadas para a produção de medicamentos.
Este texto foi baseado nos seguintes autores:
* Janete Capiberibe
* Marcelo Baglione
* Marina Silva
* Vandana Shiva