Complexidade e Sustentabilidade

1. Introdução

No “mundo em desenvolvimento”, tanto quanto no “mundo desenvolvido”, vários fatores contribuem para o surgimento e agravamento dos problemas ambientais, tais como: o crescimento populacional, a industrialização, a urbanização acelerada, a poluição e o esgotamento dos recursos naturais; sendo que a forma como estes fenômenos se organizam e se reproduzem vem causando uma degradação crescente e de efeitos imprevisíveis ao meio ambiente planetário – isto em função de até bem pouco tempo o meio ambiente ser considerado como um bem livre (e ainda o é) ou quase livre, o que é conseqüência da visão de mundo da sociedade ocidental capitalista, atualmente nomeada como “sociedade globalizada”. 

Neste cenário criado pela ação humana, no qual o mundo contemporâneo é desnudado em suas intenções de domínio da natureza, ecologia, ecodesenvolvimento, desenvolvimento sustentável, economia ecológica e economia do estado-estável, entre outros léxicos que compõem o quadro teórico-conceitual sobre o tema meio ambiente e desenvolvimento, mostram-se como sendo mais do que um movimento de “modismos” intelectuais; expressam a crescente preocupação dos diversos segmentos sociais com a constatação de que a organização social que emergiu desde a revolução industrial, está colocando em cheque1 a sobrevivência da espécie humana; como também, pondo em risco a sobrevivência de centenas de milhares de outras espécies de seres vivos e, como se não fosse suficiente, o próprio meio ambiente é colocado na “linha de frente” da ação-degradação global ora em curso. 

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2. Desvelando o desenvolvimento

As inovações tecnológicas que perseguem a otimização do processo de produção, via de regra, não levam em conta os efeitos nocivos sobre o meio ambiente – as externalidades, ou seja, os custos sociais devido à poluição do meio externo à planta industrial, como também, a depleção dos recursos naturais –, o que fica claro, principalmente, quando os custos ambientais da atividade econômica ultrapassam a capacidade assimilativa do meio ambiente, que serve como espaço de despejo de toda sorte de resíduos – afinal, tem sido até agora, economicamente eficiente conduzir de forma ecologicamente ineficiente, o modelo de civilização vigente. 

Com o agravamento dos índices de poluição e seus efeitos nocivos à saúde humana e aos diversos ecossistemas, surge nos países mais industrializados, uma maior pressão social sobre os problemas ambientais. A ação governamental, regra geral, atua através da demarcação de áreas de conservação e preservação ambientais, do estabelecimento de padrões mais rigorosos de emissão de poluentes industriais, da internalização dos custos ambientais pagos em grau cada vez maior pelas atividades econômicas que os produzem (repassando os custos aos consumidores), da criação de equipamentos sofisticados de antipoluição e, também, do desenvolvimento de plantas industriais mais limpas com a conseqüente exportação de indústrias poluidoras para os países em desenvolvimento, levando a estes um “surto” de progresso. 

De fato, não há como negar a necessidade do desenvolvimento social da humanidade; mas, de qual espécie de desenvolvimento estamos falando? Como esse desenvolvimento vem sendo posto em prática? E para quem é realizado o desenvolvimento? Será que as realizações do desenvolvimento baseado na determinação do crescimento econômico estão sendo tão prodigiosas a ponto de não suscitarem um questionamento amplo e profundo em suas bases teórico-conceituais? 

O que percebemos, atualmente, é a emergência de uma série de problemáticas que estão ligadas ao processo de desenvolvimento técnico-científico, de seus usos, de suas formações, conformações e transformações, no e do meio ambiente natural e cultural. Este “mosaico” de problemáticas é designado em sentido amplo como questões ambientais – que englobam as diversas dimensões da organização planetária. 

O eixo subjacente à reflexão teórica que surge sob a égide das questões ambientais é a noção e, posteriormente, a construção do conceito de desenvolvimento sustentável. 

O desenvolvimento sustentável vem sendo divulgado por todo o planeta como uma forma mais racional de prover uma qualidade de vida equânime e socialmente justa. Este conceito adquiriu maior expressão através do Relatório Brundtland – NOSSO FUTURO COMUM –, encomendado pela ONU, e através da Conferência UNCED-92 (Eco-92), realizada no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro em 1992. 

O conceito de desenvolvimento sustentável apresenta três níveis fundamentais, quais sejam: sustentabilidade da sociosfera, sustentabilidade da biosfera e sustentabilidade da ecosfera. Sendo que cada um destes subsistemas está interligado aos demais, alimentando perenemente o conceito de sustentabilidade através do princípio da recursividade, não havendo, portanto, o privilegiamento de um nível sobre os demais. 

Sustentabilidade é o modo de sustentação, ou seja, da qualidade de manutenção de algo. Este algo “somos nós”, nossa forma de vida enquanto espécie biológica, individualidade psíquica e seres sociais. Obviamente, que também se inclui no princípio da sustentabilidade, o meio ambiente – lato sensu – e as demais formas de vida do planeta – afinal, embora o ser humano possua autonomia de existência, não possui independência da natureza. Por mais que nos mostremos seres sócioculturais, ainda somos, também, seres biológicos! 

3. Complexidade

A grande questão com que nos defrontamos atualmente é de como articularmos as várias informações (científicas e de outros campos do saber humano) em um todo consistente e coerente para mantermos uma uniformidade organizativa, sem sufocarmos a diversidade criativa do saber-fazer humano. Uma sugestão para tal intento, são os estudos apoiados na Complexidade, elaborados, entre outros, por Edgar Morin, em sua obra intitulada, O Método, composta de quatro volumes, onde é destacada (principalmente nos dois primeiros volumes) a importância de uma organização pautada pelo macro-conceito de auto-eco-organização através dos princípios da dialógica, da recursividade organizacional e do princípio hologramático, para se viabilizar uma sociedade sustentável. 

A auto-eco-organização, sucintamente, é o entendimento de que todos os fenômenos de organização são de duas ordens: uma autônoma e outra dependente. Na autonomia temos a concepção daquilo que é interno ou próprio à organização e que dá a sua identidade enquanto tal. Na dependência temos o entendimento dos diversos níveis de relações; ou seja, da interdependência dos fenômenos organizacionais. A dialógica é o entendimento dos fenômenos como simultaneamente concorrentes, antagônicos e complementares. A recursividade organizacional postula a não-linearidade da relação causa e efeito, mas sim, o constante fluxo e refluxo, onde causas e efeitos se alternam como origens e conseqüências dos fenômenos, gerando uma complexa sinergia. O princípio hologramático diz respeito à imbricada relação entre a parte e o todo, onde o todo é maior ou menor que a soma das partes, sendo que o todo contém a parte e nela está contido. 

O fenômeno organizacional deve ser visto, então, como uma teia complexa, onde ordem e desordem estão ligadas e compõem a tessitura da própria organização na sua sustentabilidade/insustentabilidade através de ciclos que se reciclam, ora reprimindo, ora inovando o processo de auto-eco-organização. 

O princípio da sustentabilidade, embora seja um conceito antropocêntrico, possui a dimensão crítica da necessidade de co-evolução do ser humano e demais formas de vida, com e no meio ambiente natural e ambiente antrópico, como o expressa tão bem Fritjof Capra, em sua obra, A Teia da Vida, onde ressalta a necessidade da alfabetização ecológica da humanidade; ou seja, de uma prática educativa transdisciplinar que seja precursora de um novo ser humano que possua de forma marcante e inegável, a percepção e a consciência da interdependência entre os sistemas bióticos e abióticos em seus vários níveis de relações. A sustentabilidade, aqui, portanto, é percebida como um exercício de simbiose e cooperação. 

Assim, temas como poluição, biodiversidade, exploração de recursos naturais renováveis e não-renováveis e efeitos climáticos complexos, devem ser relacionados (tanto para análise quanto para a implementação de soluções) ao desemprego, pobreza e riqueza, inovações tecnológicas, valores culturais, organização política e organização social. Ou seja, as dimensões do social e do natural estão imbricadas de tal forma, que o modo de apreensão desses eventos é de fundamental importância, isto é, a percepção do observador (científico ou não) enquanto criador/produtor, processo e criatura/produto. 

Fica claro que pensar a sustentabilidade não é tarefa apenas de um ramo científico, nem mesmo de um setor específico da sociedade. Também é desvelada a condição de insustentabilidade na qual nos encontramos e que por quase um século, acreditamos ser plenamente viável. 

Daí a necessidade de refletirmos que o conceito de desenvolvimento tem sido considerado de forma unidimensional de acordo com a prática do crescimento econômico industrial ilimitado, quando na verdade, o desenvolvimento que é posto em ação comporta uma multiplicidade de idéias e concepções (conscientes ou não) que revelam a sua complexidade. Como exemplo, cito dois aspectos. 

Todo desenvolvimento significa des-envolver algo que está envolvido, ou seja, abrir, desfazer, destruir, para reorganizar e reenvolver o que foi des-envolvido em um novo padrão, em uma nova estrutura, com outras propriedades e funções. Este processo não pode ser considerado apenas de um ponto de vista do “progresso humano”, do avanço da técnica e do conhecimento científico, como se não houvesse o outro “lado da moeda”, o subdesenvolvimento! 

O segundo aspecto é justamente o subdesenvolvimento, o regresso que está contido na idéia de desenvolvimento e progresso. Existe tanto o aspecto prejudicial da própria técnica, como por exemplo, os dejetos radioativos da produção nuclear, quanto às seqüelas político-ideológicas, tão bem representadas na atualidade, pela divisão econômica mundial. O problema é que a idéia de desenvolvimento industrial vem sendo apresentada como uma crença de salvação a todos os povos do planeta, obrigando-os a uma “conversão” ao padrão considerado como “verdadeiro”. Por isso, temos que atentar para o uso do qualificativo sustentável agregado ao conceito de desenvolvimento, justamente em um momento em que o desenvolvimento é desvelado em seu subdesenvolvimento (principalmente na esfera da ética).

4. Reciclagem e auto-eco-organização

A natureza se organiza em ciclos de reciclagem biogeoquímicos que provêm a sua sustentabilidade; contudo a produção crescente de resíduos e as externalidades de origem antrópica colocam em risco a reprodução destes ciclos, e, por conseguinte, da própria vida. 

Daí que a pista para se alcançar também a sustentabilidade da sociedade humana seja através de ciclos de reciclagem. Mas, reciclagem do quê? Para se dar início a esta empreitada, comecemos pelo lixo, em seu aspecto material e energético. Penso que é uma boa escolha para refletirmos sobre o tema do meio ambiente e desenvolvimento porque, segundo Rosnay (1997:327): 

Diferentemente das leis de regulação que regem a biologia ou a ecologia, nossas sociedades industriais funcionam em “circuitos abertos”, sem macroregulações. As cadeias de produção e consumo são seqüências, dando origem a detritos que se acumulam no meio ambiente. A pressão ecológica no decorrer dos últimos anos impôs progressivamente o princípio da reciclagem (fechamento de circuitos). Embora este esteja se generalizando, por enquanto só é aplicado por um número limitado de setores industriais. 

O que temos de compreender é a necessidade urgente de organizarmos não apenas uma economia ecológica, mas uma reorganização antropossocial que se funde na premissa dos ciclos ecológicos; ou seja, devemos atentar para a construção de uma sociedade planetária em que o macro-conceito de auto-eco-organização, seja não somente uma proposição teórica, mas também a materialização de nossos projetos e ações, tanto de cunho individual quanto coletivo. 

Não se pode, portanto, prender a atenção apenas na reciclagem pontual de alguns exemplos isolados, mas sim, ampliar-se esta práxis (da reciclagem) à dimensão do social; tarefa nada fácil de ser realizada, porém urgente, já que o esgotamento da matéria/energia do planeta e o aumento vertiginoso da entropia produzida pela nossa atual sociedade que se pauta pela crença (e a executa) em um crescimento ilimitado e caótico, estão pondo em risco a sobrevivência planetária da humanidade enquanto organização cultural.

Logo, a pertinência da reciclagem como uma práxis não só para o próximo século, como para este momento, pode ser enunciada como: a construção de uma sociedade sustentável está relacionada à reciclagem constante de seus resíduos com vias à reciclagem total através da operacionalização do conceito de auto-eco-organização2.

A operacionalização proposta para tal intento, deve ser concebida através de dois requisitos básicos: configuração de modelos de reciclagem e construção de um coeficiente de reciclagem. O primeiro faz referência aos aspectos qualitativos da organização social, o segundo funciona como parâmetro quantitativo; ambos atuam como substrato empírico das formulações teóricas. 

Estes requisitos são “pistas” para a compreensão do que possa vir a ser uma sociedade auto-eco-organizada, ou seja, segundo a concepção dos ciclos ecológicos, atingindo, assim, um status que se possa designar como sociedade sustentável. 

5. Considerações finais

O desenvolvimento baseado no crescimento ilimitado do modo de produção capitalista-industrial é apenas um momento da organização antropossocial que se planetariza, e que traz (e trará) conseqüências imprevisíveis a curto e médio prazo – efeitos que se originam aquém e além da tecnosfera produzida por esta prática do crescimento ilimitado. 

Sabemos que os vários atores que compõem o cenário mundial, possuem interesses e concepções diversas sobre desenvolvimento e sustentabilidade, e de como proceder para a implantação dos mesmos. Mas o fato de estarmos no mesmo “barco”, leva a uma responsabilidade comum à construção de uma realidade social que permita aos diversos sistemas sociais, persistirem de forma sustentada respeitando a diversidade de cada organização social. 

As transformações científicas nos dão além do progresso técnico (e não há motivo para se desdenhar tais conquistas), os desequilíbrios que ameaçam os vários ecossistemas do planeta. Nunca antes na história humana o homem foi capaz de um poder, não de destruição, mas de dizimação e extermínio da totalidade dos seres vivos que habitam o planeta. Fora essa “capacidade” gigantesca, a vida social está sendo deteriorada e levada à decadência ética em proporções homeopáticas, mas que estão sendo aceleradas e ampliadas. Infelizmente a tomada de consciência ainda é lenta comparando-a com a velocidade dos acontecimentos desencadeados pelas revoluções do saber científico. 

Atualmente o homem transforma o globo terrestre em um “grande laboratório”, do qual não possui um mínimo de controle. A atividade humana altera a litosfera, a hidrosfera, a atmosfera, a biosfera; extingue espécies, compostos orgânicos e inorgânicos, diminuindo sensivelmente a biodiversidade em todo o planeta. Além disso, ensaia manipulações ao código genético, e para quê? Qual o propósito desta aventura (ou desventura)? “O progresso da ciência não pode ser paralisado”, eis o que respondem “as vozes” do saber científico, respaldadas pelas “vozes” do saber-fazer político. Talvez tenham razão, não pelos motivos que julgam, mas por não saberem como parar o carro de Jagrená!3

Mas então, quais sistemas de idéias estarão sendo concebidos e aplicados dentro das alternativas atuais? Qual ou quais apresentam maiores possibilidades de se perpetuarem? Será que a emergência de uma consciência ambiental – se de fato caracterizada como tal – apontará para mudanças globais? Será, então, o pensamento complexo uma abordagem fecunda às diversas questões e as temáticas relacionadas ao meio ambiente? Penso que a resposta a esta última interrogação é sim; pois, conforme Morin e Kern (1995 : 65), a terra não é a adição de um planeta físico, mais a biosfera, mais a humanidade. A terra é uma totalidade complexa física/biológica/antropológica, em que a vida é uma emergência da história da vida terrestre. A vida é uma força organizadora biofísica em ação na atmosfera que ela criou, sobre a terra, debaixo da terra, nos mares, onde ela se espalhou e se desenvolveu. A humanidade é uma entidade planetária e biosférica. 

Estamos agora diante da necessidade de mudarmos a nossa concepção/percepção de organização social, o que significa crise. Entretanto, a crise pode ser a oportunidade para a humanidade de criação de novas formas organizativas do ser antropossocial; ou então, de seu eclipse em mais um “inverno glacial” que poderá ou não, suscitar uma nova “chance” de recomeçarmos a civilização humana sobre a superfície do único lar que temos, a Terra! A opção consciente ou não, é nossa (da humanidade)! 

6. Notas

1 “Ordem escrita, pela qual uma pessoa titular de uma conta de depósito, […] efetua, em proveito próprio ou em proveito de um terceiro, a retirada da totalidade ou de parte dos fundos lançados a seu crédito.” (HOUAISS, Antônio (Ed.) (1979). Pequeno dicionário enciclopédico koogan larousse. Rio de Janeiro : Editora Larousse do Brasil. P.187). Os “fundos” que estão sendo retirados, dizem respeito à depleção dos recursos naturais em proveito daqueles que se julgam proprietários do meio ambiente. 

2 “A escolha de um fato ou característica para representar um conceito abstrato é conhecida como operacionalização do conceito” (RICHARDSON, 1999 : 19).

3 “O termo vem do hindu Jagannãth, “senhor do mundo”, e é um título de Krishna; um ídolo desta deidade era levado anualmente pelas ruas num grande carro, sob cuja rodas, conta-se atiravam-se seus seguidores para serem esmagados”. Gidens utiliza-se desta metáfora para expressar a insensatez do mundo moderno; assim, o carro de Jagrená, significa “[…] uma máquina em movimento de enorme potência que, coletivamente como seres humanos, podemos guiar até certo ponto, mas que também ameaça escapar de nosso controle e poderia se espatifar. O carro de Jagrená esmaga os que lhe resistem, e embora ele às vezes parece ter um rumo determinado, há momentos em que ele guina erraticamente para direções que não podemos prever” (GIDDENS, Anthony (1991). As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, p. 133 e 140).

7. Referências Bibliográficas

CAPRA, Fritjof (1997). A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo : Cultrix. 

MELLO, Reynaldo França Lins de (1999). Em busca da sustentabilidade da organização antropossocial através da reciclagem e do conceito de auto-eco-organização. Curitiba, UFPR (Dissertação). 

MORIN, Edgar. (S/d). O método I: A natureza da natureza. Portugal : Publicações Europa-América. ___ (S/d). O método II: a vida da vida. Portugal : Publicações Europa-América. 

MORIN, Edgar e KERN, Anne (1995). Terra-pátria. Porto Alegre : Sulina. 

RICHARDSON, Robert Jarry (1999). Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo : Atlas. 

ROSNAY, Joël de (1997). O homem simbiótico. Petrópolis : Vozes.

Reynaldo França Lins de Mello
Sociólogo, doutorando em História Social na USP