A incessante busca da Humanidade por recursos naturais que possibilitassem a sua sobrevivência e desenvolvimento caracteriza o painel de constantes rivalidades entre as nações ao longo da história.
A apropriação desses bens continua sendo a principal fonte de tensão nas atuais relações internacionais, reforçada por outras causas de natureza ideológica ou cultural. Os conflitos territoriais podem se resumir, em várias situações, à tentativa de expandir ou confirmar a soberania estatal sobre determinados espaços em que se localizam valiosos recursos. É dentro desse contexto que se insere a questão da água.
Por muito tempo considerada infinita e não valorável pela sua visível abundância, a água representa recurso natural de imprescindível utilidade para a humanidade, constituindo bem de valor econômico limitado na superfície terrestre, como recentemente reconhecido na doutrina jurídica ambiental comparada – dos 2,5% de água doce da Terra, 68,9% formam as calotas polares e geleiras, as quais são inacessíveis; 29,9% constituem as reservas de águas subterrâneas; em torno de 1% são, de fato, aproveitáveis. Além de viabilizar a sobrevivência humana, a água proporciona dignidade à vida dos indivíduos através do atendimento das necessidades mais básicas como higiene e saneamento.
Essencial para a redução da pobreza e o desenvolvimento sustentável, a água tem sido o alvo de numerosas conferências e debates regionais, nacionais e internacionais focalizando uma enorme quantidade de temas relacionados com o assunto, basta mencionar as duas últimas acontecidas já no século atual: o Terceiro Fórum Mundial da Água, realizado em Kyoto, em Março de 2003 e a Cúpula da Água realizada em Johanesburgo em Agosto de 2002. De fato, não se pode conceber crescimento sem água.
O aumento da demanda, devido à expansão industrial e da agricultura e ao crescimento populacional, torna-se um grande problema quando aliado à degradação qualitativa dos mananciais e à contínua alteração do ciclo hidrológico por causa do desmatamento e da urbanização.
Tal fato agrava a tradicional situação de sua escassez em determinadas áreas do mundo, pois nunca deixaram de haver conflitos a respeito dos recursos hídricos – em maior ou menor escala – derivados das mentalidades antropocêntricas e patrimonialista imperantes.
As recentes tendências apontam que três áreas principais correm risco de sofrer severo estresse de água até o ano de 2025: o Oriente Médio, a Ásia do Sul e a África. Identificam-se, não por acaso, com as regiões de constantes conflitos bélicos ou de grave questão social. Na maioria dos países do Oriente Próximo, a demanda de água ultrapassa em grande medida o abastecimento renovável. Estes problemas, a escassez de recursos e certas formas de degradação ambiental, são fatores determinantes de desestabilidade política ou dos conflitos violentos em nível local, regional e interestatal. Os líderes das nações do Oriente Médio, tanto do passado como do presente, têm declarado que a água é o fator que mais provavelmente levaria seus países à guerra. Diversos estudiosos do assunto como Shlomi Dinar, professor da Universidade de Columbia e membro da filial estadunidense da Cruz Verde Internacional, analisaram exaustivamente o tema. No caso do Sul da Ásia, o principal problema é o aumento descontrolado da população, causando diminuição da relação entre oferta e procura dos recursos hídricos. No continente africano, pode-se constatar que a questão ambiental, mormente a desertificação, conduzida menos pela ignorância dos aborígines do que pela necessidade de sobrevivência, é sem dúvida razão que contribui com o estresse hídrico.
A crise da água, no entanto, ultrapassa os limites territoriais, pois a função ambiental desse recurso interfere nos processos em nível global. As águas estão em constante movimento (ciclo hidrológico), o que demonstra que o impacto de ações antrópicas localizadas têm ressonância mundial. Há aqüíferos subterrâneos que perpassam as fronteiras de vários países. Por isso, nenhum Estado pode se eximir da tarefa de garantir, através da conservação e preservação dos recursos hídricos, a qualidade de vida de seus povos e das futuras gerações.
Chegando ao ponto principal deste ensaio, qual será o papel do Brasil na atual questão da água?
É reconhecido internacionalmente que determinados países em desenvolvimento estão fazendo avanços construtivos em relação à gestão dos recursos da água. O gigante sul-americano é sem dúvida um dos expoentes da nova consciência ambiental (em comparação ao resto do mundo) motivado pela percepção de necessidade de preservação da vasta biodiversidade e da conservação dos “abundantes” recursos naturais (das águas doces, o Brasil detém aproximadamente 12% do total mundial, mas estes estão distribuídos de maneira bastante desigual. A Amazônia concentra 80% do total, enquanto o Nordeste é a região menos favorecida, sofrendo com secas perió dicas.). As realizações do Brasil no setor de água são significativas e isso tem o colocado como inovador e líder emergente nessa matéria.
Desse modo, como pode este país efetivamente assumir a liderança na defesa dos recursos hídricos e por que deve fazê-lo? As ações do Brasil devem servir de exemplo para outros países, em outras palavras, deve se encarar a atuação brasileira interna da proteção das águas como modelo a ser seguido. Não é preciso dizer que esse comprometimento, com certeza, melhora a imagem do Brasil no exterior, favorecendo sua inserção política. Outra maneira de atuação é através da formação de grupo de pressão, composto por outros expressivos países em desenvolvimento, engajados com a questão da água, contra as ações poluidoras de países desenvolvidos e de suas respectivas empresas transnacionais. É nesse contexto que o direito assume lugar primordial na condução dos avanços na conservação dos recursos hídricos. Isto é, pode o direito ser instrumentalizado a serviço da proteção das águas.
Neste âmbito de atuação, o Brasil tem um dos regimes jurídicos mais avançados do mundo. O moderno sistema jurídico de água envolve a implementação de normas internas de gestão e conservação considerando a água como bem ambiental, recurso natural limitado dotado de valor econômico, assegurando que sua gestão deva sempre proporcionar o uso múltiplo das águas, e estabelecendo a bacia hidrográfica como unidade territorial e a descentralização como tônica dominante para a concreção de Políticas Nacionais de Recursos Hídricos.
Compreende também normas de garantia da tutela civil (indenização por danos), penal (responsabilidade criminal) e administrativa (multas e concessões de outorgas) em matéria de águas. Além disso, necessita de formas de efetivação do direito fundamental à água, o que envolve prestações positivas por parte do Estado como ações de saneamento básico, provimento de água potável de qualidade e em quantidade suficiente e a segurança de que em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais.
O campo do Direito Internacional, por sua vez, não pode ficar defasado. O Brasil deve promover a conclusão de tratados multilaterais de combate à poluição hídrica e a efetivação da responsabilidade internacional dos Estados por danos causados.
Também compete ao Brasil a ampliação das normas ambientais comunitárias de modo a harmonizar a legislação dos países em integração no que se refere à gestão e proteção dos recursos hídricos. Por fim, a toda a nação brasileira cabe lutar pelo aperfeiçoamento dos instrumentos de implementação do direito humano à água.
Por Murilo Otávio Lubambo de Melo
– Graduando em Direito pela UFPE, Monitor de Hermenêutica Jurídica
Fonte: Eco 21 – www.eco21.com.br