No tempo em que os europeus chegaram à América do Sul, no século XVI, os guarani deviam ser mais de um milhão de pessoas e ocupavam um território de dezenas de milhões de hectares, desde o litoral de São Paulo, quase toda a região Sul, até parte da Argentina e uma larga parcela do Paraguai – onde, até hoje, o guarani é língua oficial, falada por muito mais gente do que o espanhol, principalmente entre os camponeses do país.
Apesar das similaridades culturais, os guarani nunca constituíram uma unidade sócio-política, mas, como acontecia no caso dos tupi, no litoral entre São Paulo e o Maranhão, quem aprendia a língua em um determinado local conseguia se comunicar com gente de quase todas as outras regiões.
Ao longo da história, as diferentes comunidades guarani tiveram variadas denominações. Atualmente, no Brasil, existem três grupos: os guarani mbya, no litoral do Sudeste e no Rio Grande do Sul, principalmente; os guarani nhandeva, ou simplesmente guarani, como eles se auto-denominam, no sul de Mato Grosso do Sul, interior do Paraná e de São Paulo; e os guarani kaiowá, que, em território brasileiro, são encontrados apenas no sul de Mato Grosso do Sul. No Paraguai, os kaiowá são conhecidos como pai tavyterã, e os nhandeva, por chiripá, ou ava katu eté. Em outros países, há mais grupos guarani, como os chiriguanos, na Bolívia.
Grosso modo, os mbya foram os guarani que formaram as missões jesuíticas, no século XVII. Os kaiowá, por sua vez, habitavam uma região muito erma, as densas florestas da serra do Amambai, onde hoje se localiza a fronteira entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai, entre os rios Apa e Miranda – era a chamada província do Itatim. Por causa das dificuldades de acesso, eles permaneceram praticamente isolados até meados do século XIX.
Depois da Guerra do Paraguai (1864-1870), que, em parte, teve como palco o território kaiowá, esses índios passaram a ter cada vez mais o contato com os brancos. Nos anos 1880, o governo brasileiro concedeu ao gaúcho Thomas Larangeiras o direito de explorar a erva-mate nativa numa vasta região entre o sul de Mato Grosso, o oeste do Paraná e o leste do Paraguai, com mais de cinco milhões de hectares de extensão.
Progressivamente, até os anos 1940, quando entrou em decadência, essa atividade incorporou os kaiowá e nhandeva da região à economia nacional, a partir da contratação de sua mão-de-obra no extrativismo, em troca de bens de consumo como o charque e o sal. Em seguida, entre os anos 50 e 70, os índios continuaram trabalhando na “limpeza” das fazendas de colonos vindos de todas as partes do país que se instalavam na região depois que Getúlio Vargas instituiu, em 1943, a Colônia Agrícola Nacional, em Dourados (MS).
As fazendas da região experimentaram grande impulso, principalmente a partir dos anos 70, quando a economia local se integrou ao mercado internacional, sobretudo com a soja e o gado de corte. Com a mecanização e a especialização em torno dessas atividades, a presença indígena nos fundos de fazenda passou a ser, na maioria dos casos, dispensável e indesejável.
A forma tradicional de organização social kaiowá e guarani se dá em famílias extensas (para entender o que é isso, imagine aquelas fotos de família que nós, brancos, conseguimos tirar poucas vezes na vida, quando se reúnem todos os tios, primos, netos, bisnetos…). Até cem pessoas moravam numa mesma casa, geralmente perto de um córrego ou rio, em uma região de floresta que oferecesse boa terra para plantio, caça e pesca. As famílias eram lideradas pelo casal mais idoso, experiente e que demonstrasse boas habilidades xamanísticas – para curar e manter a saúde das pessoas, além de boas lavouras e boa caça, todos sinais de uma boa relação com os deuses.
Cerca de três a quatro dessas famílias extensas habitavam a poucos quilômetros umas das outras, formando um tekoha, o que equivale a nossa idéia de comunidade. Embora não haja um pátio central ou casas próximas, essas famílias eram ligadas por casamentos entre seus membros e festas periódicas em que trocavam presentes e realizavam refeições conjuntas – o que mantinha seus laços de solidariedade, cooperação e amizade.
Nos anos 70, dezenas dessas famílias extensas, cada vez mais espremidas nos fundos de fazenda, foram levadas aleatoriamente para oito reservas indígenas que haviam sido demarcadas pelo Serviço de Proteção ao Índio, entre as décadas de 10 e 40. Essas reservas ficam propositalmente próximas das cidades da região, como Caarapó, Amambaí e Dourados.
O objetivo dessa demarcação era o de promover a progressiva “civilização” dos índios. No início do século XX, imperava entre nossa elite intelectual o pensamento evolucionista, segundo o qual esses povos “selvagens” estavam apenas num estágio “menos avançado” de cultura. Em contato com os brancos, eles naturalmente se tornariam como nós.
Com as famílias trazidas aleatoriamente para as oito áreas, os problemas nessas reservas foram se acumulando. A falta de espaço para plantar e a demanda cada vez mais intensa dos mais jovens por bens produzidos pelos brancos levou à intensificação da changa, o trabalho por contrato nas fazendas e nas plantações das usinas de cana que se instalaram na região.
Por exemplo, na reserva de Dourados, a maior cidade da região, no final dos anos 50, a população era de menos de mil pessoas. Hoje é de quase dez mil. Problemas como os altos índices de suicídios, violência e desestruturação de famílias nucleares podem estar relacionados a essa superpopulação, segundo avaliam antropólogos e historiadores.
Hoje, os cerca de 30 mil guarani e kaiowá do Mato Grosso do Sul ocupam cerca de 40 mil hectares. Dá pouco mais de um hectare por pessoa, ou cinco hectares para uma família nuclear. Os especialistas estimam que seriam necessários pelo menos 40 hectares por família para garantir o modo de produção tradicional, com uma agricultura de coivara com rotação dos terrenos. (Agência Brasil).
Agência Brasil