No último dia 3 Dezembro, após mais de dez anos de discussões, a Câmara dos Deputados aprovou nova Lei para a Mata Atlântica. Entre outros avanços, a Lei protege corredores ecológicos, vegetação secundária em estado de regeneração e bolsões naturais inseridos em áreas urbanas. Parece um grande avanço que nos permitirá salvar a Mata Atlântica da sua completa extinção. Ao olharmos o papel em que a Lei está impressa, somos tomados por um sentimento de otimismo aliviado.
Infelizmente, contudo, a nova peça legal acrescenta muito pouco à realidade atual da Mata Atlântica.
De fato, com as leis pré-existentes, já era possível proteger a contento esse ecossistema tão ameaçado. Se aplicada, a legislação brasileira anterior a 3 de Dezembro de 2003 teria, por si só, evitado a redução da Mata Atlântica a apenas 7% de sua dimensão original. O que nos falta não são leis, nem Planos; nos faltam manejo efetivo e gestão.
No longínquo ano de 1936, Magalhães Correa, autor do livro O Sertão Carioca, ao percorrer as matas do então Distrito Federal, já avisava que a caça e a extração de lenha corriam soltas nas Florestas Protetoras da União, conhecidas por Pedra Branca, Pretos Forros e Covanca.
Com efeito, por essa época, era chique abater a fauna das matas cariocas. Na década de 30, Fortes, zagueiro do Fluminense e da Seleção Brasileira, era personagem contumaz de crônicas jornalísticas em suas intrépidas caçadas na Floresta dos Trapicheiros, na Tijuca. Isso ao arrepio das leis ambientais da época e nas barbas das autoridades federais do Rio de Janeiro, que àquela altura era a Capital da República.
Também as favelas que cresceram (e seguem engordando) às expensas da Mata Atlântica da suposta “maior floresta urbana do mundo”, o fazem apesar da existência de diversos dispositivos legais em contrário.
Há muitos anos já é proibido suprimir mata ciliar, poluir corpos d’água, caçar… Mas não se cumprem as leis. No caso da Mata Atlântica, ainda vemos, vez por outra, nos jornais, notícias de firmas multadas por desmatamento. Menos mal, mas ainda assim é péssimo.
Marc Dourejianni, membro da seccional Brasil da Comissão Mundial de Áreas Protegidas da UICN disse, no último Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação que “quem trabalha em Parque tem que gostar de andar no mato, dormir no mato, se lanhar no mato”. Falta-nos essa gente.
O exemplo da Austrália
Nesse sentido, vale a pena observar como a Austrália protege seus últimos trechos intactos de floresta pluvial úmida, que hoje equivalem a menos de 3% de sua superfície primitiva.
Em primeiro lugar, eles são prioridade absoluta. Ou seja, há uma política de tentar proteger cada centímetro ainda existente de mata tropical úmida, não importando a sua dimensão. Em conseqüência, há Parques Nacionais de todos os tamanhos; alguns com apenas 30 ha.
Muitos ambientalistas considerariam um Parque destes liliputiano demais para ser relevante de um ponto de vista da preservação. De fato, considerados estritamente sob este aspecto, assim o seria. A própria UICN recomenda que os Parques tenham, no mínimo, 1.000 ha; contudo, os Parques diminutos têm se mostrado muito úteis à causa da conservação.
Em alguns casos, a preservação, na categoria Parque, de várias pequenas áreas próximas umas das outras, ou inseridas em grandes centros urbanos, as transformou em ícones da causa ambiental para os moradores destas cidades, que através da visitação a esses Parques, considerados irrelevantes, passaram a ter um entendimento maior da necessidade de preservar.
Em outros casos, como o do inicialmente fragmentado Parque Nacional de Crater Lakes em Queensland, a proteção de vários pequenos bolsões desconectados, acabou criando as condições para que, anos depois, significantes áreas de uso agro-pastoril fossem desapropriadas de modo a implantar-se um corredor ecológico, por meio de reflorestamento, ligando os diferentes bolsões e dando relevância ao Parque como um todo.
Mais do que proteger nominalmente, contudo, a Austrália assegura o manejo adequado às áreas protegidas. Seja por administração direta dos Serviços de Parques, seja por meio de subdelegação às diversas municipalidades.
Enquanto isso, no Brasil, continuamos a claudicar. Recentemente, a candidatura de Rio à Patrimônio da Humanidade foi rejeitada porque o Pão de Açúcar carece de proteção legal adequada.
Será que os atributos cênico-culturais do Pão de Açúcar não são suficientes para incorporá-lo ao Parque Nacional da Tijuca?
Parece que não! De fato, há vozes em Brasília a defender que a própria Tijuca é irrelevante do ponto de vista da conservação ambiental. Afinal é muito fragmentada, sua mata não é primária, está infestada de espécies exóticas e é muito pressionada pelas favelas.
Não levam em conta seu valor como ícone de uma causa. Conseqüentemente, não fazem uso dele. O Corcovado, recentemente reformado, é visitado anualmente por 1 milhão de turistas. A vasta maioria sobe, admira a estátua e desce sem ser informado que está em um Parque Nacional (de Mata Atlântica); não há no Corcovado sinalização ambiental nem educativa reportando o visitante ao fato que ele está em um Parque Nacional (de Mata Atlântica).
Fosse o Corcovado na Austrália a história seria outra. Mas, como dizem os mais sábios, “o Brasil não tem que copiar modelos estrangeiros; tem é que criar os seus”. Vamos esperar que estes modelos sejam criados – e, sobretudo, implementados – antes que a Mata Atlântica esteja completamente extinta.
Não temos um Instituto Nacional de Unidades de Conservação. Os nossos Parques estão relegados a uma divisão subordinada a um departamento de um grande Instituto Nacional do Meio Ambiente.
Bonito, mas pouco efetivo. O exemplo da Serra da Bocaina, segundo maior Parque de Mata Atlântica do País, é sintomático. Não há patrulhas efetivas de fiscalização porque o Parque não possui funcionários suficientes para implementar atividades de manejo de fato. A parte média do Parque, ao redor da área conhecida por “Central”, tem visto as “roças” aumentarem a cada ano.
O aumento dessa agricultura de subsistência corresponde à equivalente construção de novas levas de moradias todos os anos. É mais gente que se aboleta dentro do Parque. No processo, os pés de moleque da centenária Estrada do Ouro que liga São José do Barreiro e Bananal a Mambucada são arrancados para que se construam os alicerces das novas habitações. Tudo contra a Lei. Mas como fazer para que a Lei seja cumprida? Multar por desmatamento equivale a prender um homicida. Pune o criminoso, mas não evita o crime. A Mata Atlântica, uma vez suprimida, não regenera ao seu estado original com o dinheiro da multa aplicada.
Não temos no Brasil a profissão de guardas-parque. Não temos a tradição de leis auto-aplicáveis, de sanções imediatas, como pede a Mata Atlântica. Poderíamos, entretanto, ter um melhor sistema de gestão.
Há, por exemplo, em vários Estados, batalhões ambientais subordinados às Polícias Militares e aos Bombeiros. As picuinhas políticas e as brigas de poder, todavia, os fazem sentar em quartéis urbanos, desconectados da sua atividade.
Se quiséssemos efetivamente resolver o problema da Mata Atlântica estaríamos aquartelando essa tropa dentro dos Parques Nacionais e Estaduais, colocando-os para fazer o serviço de guarda-parque, subordinados aos Diretores dos Parques. Como? Subordinar um policial estadual a um Diretor de Parque Federal? São órgãos diferentes, em esferas de Governo diversas. Impossível!
É difícil combater a realidade da burocracia brasileira. Executar as normas e gerir os parques é muito complicado. Legislar é mais fácil. Bem-vinda seja a nova Lei da Mata Atlântica. Melhor que ela seria, contudo, a vontade política de fazê-la cumprir.
O Brasil assumiu internacionalmente o compromisso de proteger 10% de cada um dos biomas que ocorrem no território nacional. No caso da Mata Atlântica, da qual só sobram 7% da sua superfície original, esse compromisso se traduz em proteger todos os seus remanescentes.
Fonte: Revista Eco 21, Ano XIV, Edição 87, Fevereiro 2004. (www.eco21.com.br)
Pedro da Cunha e Menezes – Ambientalista, escritor e diplomata