Brasil e o Protocolo de Kyoto

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Para melhor compreender a participação brasileira nas negociações do regime de mudanças climáticas é necessário salientar que no referente às emissões de carbono o nosso país tem três grandes vantagens e uma grande desvantagem.

As três vantagens são: ser um país de renda média (estando fora dos compromissos obrigatórios de redução de emissões de carbono correspondentes aos países desenvolvidos), ter uma matriz energética com forte peso da hidreletricidade (mais de 90% da eletricidade gerada a partir de fontes hídricas) e conseqüentemente muito limpa do ponto de vista das emissões estufa, e, possuir no seu território 16% das florestas mundiais (tendo grande importância no ciclo global do carbono). A grande desvantagem é ter uma grande emissão de carbono derivada do uso da queimada na agricultura tradicional e do desmatamento na Amazônia.

As emissões de carbono do Brasil são ao redor de 2,5% das mundiais: quase 25% são procedentes da indústria e da agricultura modernas e 75% da agricultura tradicional, da conversão de uso na fronteira agrícola e das atividades madeireiras ineficientes e/ou predatórias. Cerca de 80% da população brasileira está vinculada a atividades produtivas que não dependem de altas emissões de carbono e conseqüentemente tem uma taxa de emissões per capita e por unidade de PIB muito inferiores à média dos países desenvolvidos e emergentes, produto fundamentalmente do alto peso da hidreletricidade na matriz energética.

Aproximadamente 20% da população brasileira está ligada (direta ou indiretamente) à agricultura tradicional, à conversão de uso da terra na fronteira agrícola e à atividade madeireira ineficiente e/ou predatória, e conseqüentemente, é responsável por emissões de carbono per capita superiores a média dos países emergentes e por unidade de PIB muito superiores a média dos países desenvolvidos e emergentes.

A política amazônica federal do Presidente Fernando Henrique Cardoso tem tido as seguintes características fundamentais: estímulo a grandes investimentos através do programa “Avança Brasil” (nas áreas de mineração, energia, madeira, soja e transportes); baixa capacidade de punir as queimadas e desmatamento ilegal das empresas madeireiras, dos latifundiários, dos colonos, do “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra” e das populações tradicionais; baixa capacidade de articular políticas e incentivos para o desenvolvimento do setor biodiversidade/biotecnologia que valorizariam os recursos da floresta promovendo o desenvolvimento de cadeias produtivas de alto valor agregado.

Também se caracteriza pela baixa capacidade de promover o turismo ecológico nacional e internacional; pela incapacidade de controlar o avanço do crime organizado derivado principalmente do tráfico de drogas, armas, ouro e animais silvestres (isto se constitui no principal problema para a consistência e eficiência das políticas públicas para a Amazônia); e, pela prioridade para o estabelecimento do SIVAM que provavelmente terá um impacto muito positivo em termos de controlar atividades ilegais e reforçar o Estado de Direito.

O crescimento da demanda por madeira do resto do país, a existência de vastos contingentes de populações em condições de pobreza com a conseqüente tendência ao comportamento predatório, a corrupção em vários postos do IBAMA, e uma visão de curto prazo do desenvolvimento por parte das elites locais tem sido as causas fundamentais do desmatamento na Amazônia.

A taxa de desmatamento tem se mantido numa média anual acima dos 15.000 Km² por ano desde 1995, quando um uso racional da floresta demandaria menos de 5.000 Km² por ano.

A limitada disposição e capacidade para coibir o desmatamento na Amazônia demonstrada pelo governo Cardoso (e pela maioria dos governos estaduais) tem limitado as potencialidades de liderança no Brasil no Protocolo de Kyoto. A coalizão pró-desmatamento, predominante na Amazônia e com grande poder no Congresso, tem condicionado o desempenho do Brasil moderno.

O regime de mudanças climáticas é um dos mais complexos e relevantes regimes internacionais porque implica profundas inter-relações entre a economia global e o ambiente global, e nele existem nove países chaves.

A despeito do clima pessimista que se instalou a partir de março de 2001, causado pelo Presidente George W. Bush declarando morto o Protocolo de Kyoto, a maioria das questões principais pendentes da Conferência de Haia(novembro 2000) foi negociada com sucesso nas Conferências das Partes, realizadas em Bonn (julho 2001) e Marrakesh (novembro 2001).

Para a realização do Acordo todas as partes contribuíram: a União Européia fez mais concessões que em Haia; o G-77 moderou suas demandas; os países do “Grupo Guarda-chuva” abandonaram os EUA; as ONG´s procuraram qualquer acordo antes que um forte acordo; e, os EUA aceitaram sua derrota não bloqueando as negociações. Pela primeira vez na história contemporânea uma questão que não é clássica de segurança ou economia, ocupou um lugar principal na agenda dos principais países do mundo.

Para usar uma fórmula clássica das relações internacionais, a mudança climática passou da baixa política para a alta política. Também pela primeira vez depois da II Guerra Mundial, os EUA e a Europa Ocidental se confrontaram numa questão de alta relevância da arena internacional.

E é também a primeira vez que, no pós-Guerra Fria, a posição do governo estadunidense conta com uma forte oposição doméstica e internacional imbricadas.

A atuação do Brasil no processo negociador do Protocolo de Kyoto (1996-2001) esteve orientada pela definição do interesse nacional segundo quatro dimensões principais, detalhadas a seguir:

  • Afirmar o direito ao desenvolvimento como um componente fundamental da ordem mundial, em continuidade com um pilar clássico da política externa brasileira.
  • Promover uma visão do desenvolvimento associada com a sustentabilidade ambiental, em correspondência com o grande crescimento da consciência ambiental no Brasil e sua tradução em políticas públicas nacionais e estaduais.
  • Promover uma posição de liderança do Brasil no mundo em correspondência com o crescimento do prestígio internacional do país durante o Governo Cardoso.
  • Impedir que o uso das florestas seja objeto de regulação internacional para evitar os riscos de questionamento internacional ao desmatamento na Amazônia. É importante salientar que a entrada das florestas no regime mundial de clima não foi percebida como ameaça à soberania nacional por outros países florestais: Estados Unidos, Canadá, Rússia, Austrália e Costa Rica (entre outros) promoveram fortemente a regulação internacional das florestas.

As características específicas do posicionamento brasileiro nas diversas questões do Protocolo de Kyoto podem ser consideradas cronologicamente como segue.

A delegação brasileira esteve sob o comando do Ministério da Ciência e Tecnologia (o presidente da Agência Espacial Brasileira, Gilvão Meira Filho, teve um papel fundamental) nos aspectos substantivos e do Itamaraty nos aspectos do processo negociador. Até 1999, a Presidência da República não considerou a negociação do Protocolo de Kyoto uma questão importante sobre a qual tinha que interferir.

A arena de definição do posicionamento brasileiro foi muito restrito entre 1996 e 1999, quase sem participação de governos estaduais, empresários ou ONGs.

A partir do ano de 2000 o campo de definição do posicionamento brasileiro se ampliou com a inclusão em posição secundária do Ministério do Meio Ambiente, do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável – CEBDS, de alguns governos estaduais da Amazônia e de várias organizações não-governamentais.

Em junho de 2000, por iniciativa do Deputado Fábio Feldmann, foi criado oFórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, de caráter multissetorial reunindo diversos atores governamentais, empresariais, não-governamentais e acadêmicos.

Este Fórum tende a constituir-se numa inovação a escala internacional, tanto em termos de arena para a formação do posicionamento nacional quanto de internalizar o regime de clima dentro do país.

A partir de outubro de 2000 o Ministério do Meio Ambiente e os governos de alguns estados Amazônicos questionaram o posicionamento histórico do Brasil contrário à inclusão do conjunto do Ciclo do Carbono no Protocolo (de sumidouros através de florestas e do manejo do solo).

Várias ONGs, particularmente as que tem forte atuação na Amazônia demandaram ativamente que o Brasil apoiasse a inclusão de projetos relacionados a proteção de florestas primárias (evitando o desmatamento) no MDL. Contudo, o MCT e o Itamaraty continuaram predominando.

O Brasil sempre teve uma posição de liderança dentro do Grupo G-77/China (grupo dos 77 países em desenvolvimento mais a China), embora tratando de constituir-se numa ponte entre este grupo e os países desenvolvidos, frente à Índia, China, Indonésia e Malásia, que assumiram em geral posições de maior confronto com países desenvolvidos.

Nosso país manteve uma posição de colocar toda a responsabilidade pela redução das emissões nos países desenvolvidos e opondo-se frontalmente aos compromissos de redução da taxa de crescimento futuro das emissões por parte dos países emergentes.

A posição de liderança brasileira nesta questão levou a enfrentar-se com os países desenvolvidos (e particularmente com os Estados Unidos) em várias ocasiões e com a Argentina em 1998/99.

O Brasil assumiu desde 1997 uma posição principista ao levantar a doutrina de que as emissões de carbono deveriam ser calculadas diacronicamente em sua acumulação histórica desde fins do séc. XVIII e não apenas sincronicamente a partir do ano-base de 1990.

Embora esta posição tenha contado com forte apoio da maioria dos países não-Anexo 1 (e tem sido um do pilares da liderança brasileira), não tem sido considerada seriamente pelos governos dos países do Anexo 1 e conseqüentemente não tem tido impacto, pelo menos até fins de 2001, no processo negociador.

A proposta brasileira é consistente em termos técnicos, legítima do ponto de vista histórico e eqüitativa desde uma abordagem teórica baseada em direitos universais da população mundial ao uso da atmosfera como um bem público global, mas pode ser considerada utópica por estar muito longe das realidades efetivas do poder mundial em início do séc. XXI, contudo, é provável que a proposta brasileira acabe contribuindo para melhorar a capacidade de negociação geral dos países emergentes quando se decida a questão dos seus compromissos de redução de emissões.

Em junho de 1997, o Brasil fez uma proposta original, o Fundo de Desenvolvimento Limpo (FDL), que estaria constituída pelas multas pagas pelos países desenvolvidos que não cumprissem com as metas de redução de emissões.

Esta proposta teve forte apoio dos países emergentes, mas teve frontal oposição de todos os países desenvolvidos. Em outubro de 1997, porém, aconteceu um desdobramento inesperado: EUA e Brasil articularam uma versão alterada do FDL que se denominou Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).

O MDL abriu a possibilidade dos países desenvolvidos cumprirem parte das suas metas de redução de emissão através do financiamento de projetos de desenvolvimento sustentável nos países emergentes e pobres. O MDL acabou sendo uma das grandes novidades do Protocolo e, através dele, o Brasil aceitou o conceito de mecanismos de mercado flexibilizadores para complementar os compromissos de redução de emissões dos países desenvolvidos.

Esta aceitação por parte do Brasil foi uma ruptura tanto com sua anterior oposição à Implementação Conjunta (prevista na Conferência das Nações Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento – Rio 92), quanto com sua oposição as cotas de emissão comercializáveis entre os países do Anexo 1 (que acabaram sendo estabelecidas no Protocolo).

O MDL constitui-se num momento notável de colaboração entre diplomacias estadunidense e brasileira e numa vitória geral de ambas, porque através dele os países emergentes e pobres aceitaram o princípio de mecanismos flexibilizadores de mercado para complementar os compromissos de redução de emissões dos países desenvolvidos.

O componente mais flexível e criativo da posição brasileira em todas as negociações do Protocolo mostrou-se na capacidade de articular-se com a diplomacia estadunidense, em outubro de 1997, para transformar o inviávelFundo de Desenvolvimento Limpo no novedoso e promissor Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL.

Entre 1999 e 2001, o Brasil liderou uma proposta vitoriosa para que o MDL seja o primeiro dos três mecanismos flexibilizadores a ser implementado, e, para que no seu Conselho Diretor os países emergentes e pobres tenham uma representação mais forte que no GEF – Global Environment Facility.

Com relação aos sumidouros de carbono, o interesse nacional foi definido sempre de um modo defensivo: a Floresta Amazônica foi percebida como um ônus por causa do desmatamento e não como um trunfo por causa do serviço global de seqüestro de carbono. O suposto implícito dos negociadores brasileiros era que o país não conseguiria colocar um freio significativo no desmatamento na Amazônia. Isso levou o Brasil a se posicionar contra a inclusão do conjunto do ciclo do carbono no Protocolo, temendo que no futuro, quando se estabeleçam compromissos para os países emergentes, o Brasil possa vir a ter um grande passivo derivado do desmatamento na Amazônia.

A decisão final pode analisar-se como um intermediário para esse posicionamento brasileiro: de um lado Brasil e a União Européia foram derrotados e os sumidouros de carbono passaram a fazer parte do Protocoloem geral, mas no referente ao MDL apenas o florestamento e o reflorestamento poderão ser acreditados como atividade de seqüestro de carbono, ficando de fora do MDL as atividades orientadas a evitar o desmatamento de florestas primárias (nisto o Brasil e a União Européia foram vitoriosos). Na questão da não-inclusão das florestas primárias no MDL o Brasil ficou em minoria entre os países não-Anexo 1, particularmente na América Latina.

Apesar de ser um país emergente com matriz energética limpa, o Brasil assumiu uma aliança geral com países emergentes com matriz energética dependente de combustíveis fósseis (China, Índia e Indonésia). A vantagem da matriz energética ficou sempre subordinada a desvantagem do desmatamento na Amazônia na formação da posição brasileira. Por isso, Brasil aliou-se em geral com a União Européia contra os países florestais com capacidade de controle do desmatamento (EUA, Canadá, Austrália, Rússia, Japão, Chile, Costa Rica) na questão da inclusão dos sumidouros de carbono na contabilidade de emissões e conseqüentemente na valorização do serviço global prestado pelas florestas como seqüestradores de carbono. Uma visão alternativa/positiva sobre a Amazônia teria levado o Brasil para uma aliança inversa o que talvez teria tido influência significativa sobre o perfil final doProtocolo.

O Brasil teve sempre uma posição de forte liderança na questão da necessidade de novos fundos financeiros dos países desenvolvidos para o financiamento de transferência de tecnologias limpas e desenvolvimento de capacidades institucionais nos países em desenvolvimento e conseguiu um triunfo parcial a este respeito na Conferência de Bonn (2001). A ênfase brasileira na transferência facilitada de tecnologias produtivas limpas foi consistente com o objetivo geral da política externa brasileira, durante o governo Cardoso, de promover a inserção competitiva do país na economia globalizada.

As relações entre Brasil e EUA no âmbito do Protocolo tornaram-se difíceis desde meados de 1999 devido ao confronto em várias questões relevantes: os EUA eram favoráveis a compromissos da redução da taxa de crescimento futuro das emissões para os países emergentes no primeiro período (2010) e o Brasil era frontalmente contra; o Brasil era contrário a inclusão das florestas nativas no MDL e os EUA a favor.

Os EUA eram a favor de um regime de sanções fraco e o Brasil apoiou a União Européia num regime forte, o Brasil (apoiando a União Européia) queria incluir limites nos sumidouros de carbono para os países desenvolvidos e os EUA eram contra.

Desde a retirada dos EUA do Protocolo (março de 2001) até a conclusão das negociações (novembro 2001), o Brasil teve uma atuação destacada, tanto na crítica da posição estadunidense quanto na promoção das negociações entre os diversos blocos de países. O Brasil teve um papel de liderança na articulação da aliança entre a União Européia e os países emergentes que possibilitou o sucesso na negociação final do Protocolo.

Em vários discursos internacionais – antes e depois do 11 de setembro – o Presidente Fernando Henrique Cardoso criticou incisiva e consistentemente a política unilateral do Governo Bush em relação ao regime de mudanças climáticas. Se compararmos as posições relativas do Brasil e dos EUA com relação aos problemas ambientais globais entre 1989 e 2001, pode-se dizer que houve uma inversão que revela a evolução positiva acontecida no Brasil (mesmo com as limitações ainda existentes): em 1989 o Governo Bush (pai) aliado dos outros países desenvolvidos criticava o Governo Sarney pela contribuição para as mudanças climáticas do alto desmatamento na Amazônia; em 2001 o Governo Cardoso, aliado a outros países desenvolvidos, criticava o Governo Bush pela falta de uma atitude responsável em relação ao clima.

Desde 2000 o Presidente Cardoso tem elevado o perfil da participação brasileira no Protocolo de Kyoto e isto, no caso de continuar nos próximos anos, promete bons frutos para o Brasil.

A viabilidade de longo prazo do Protocolo de Kyoto depende de uma volta dos EUA ao regime e da aceitação de compromissos de redução da taxa de crescimento futuro das emissões por parte dos países emergentes; as emissões poderão continuar a crescer, mas a um ritmo menor.

A posição do Brasil será provavelmente decisiva neste respeito já que entre os países emergentes chaves é o melhor situado para avançar naquela direção. Para isso, o Brasil teria que diminuir o desmatamento na Amazônia, uma meta que provavelmente contaria com o apoio da grande maioria da população.

Assim, uma coalizão para um uso mais racional da Floresta Amazônica teria impactos favoráveis não apenas internamente no Brasil, mas também para o prestígio (soft power) do Brasil no mundo e para a cooperação internacional em geral.

Fonte: Eduardo Viola, Revista Eco 21, Ano XII, Número 66, Maio 2002 (www.eco21.com.br)