A população indígena brasileira, de acordo com a FUNAI, soma cerca de 410.000 índios divididos em 220 povos, incluindo aqueles que vivem fora das aldeias. Essa população encontra-se em diferentes processos de integração com a sociedade nacional, apresentando um quadro bastante complexo, onde temos desde índios recém contactados a índios cujo contato remontam há séculos, a partir das frentes de expansão. Nesse sentido, temos etnias que estão reduzidas à massa uniforme do campesinato brasileiro e etnias que resistiram no processo de integração nacional. Etnias tidas como desaparecidas e etnias ressurgidas a partir de mecanismos de re-construção de identidade étnica. Há grupos vivendo em áreas de 800 hectares por índio, como ocorre na Amazônia, e grupos em que cada índio não ocupa mais do que 0,59 hectare, como ocorre no estado do Mato Grosso do Sul.
Este cenário indígena gera discursos e afirmativas, na maioria das vezes conflitantes entre índios e outros segmentos da sociedade brasileira, que disputam com os índios as terras, os recursos naturais e, até mesmo, valores simbólicos da identidade nacional. A dificuldade em definir se são ou não índios; se é necessário integrá-los definitivamente ou mantê-los como estão; e se possuem muitas ou poucas terras, são algumas das questões que dividem opiniões, além das divulgadas na mídia nacional e internacional, como no caso das mortes de crianças indígenas vítimas de desnutrição. Em conjunto, todas essas questões estão interligadas e merecem reflexões.
É de conhecimento amplo que as terras indígenas são fundamentais para a sobrevivência física e cultural dos índios, por serem tradicionalmente povos coletores e caçadores e por estabelecerem com elas uma relação simbólica. Hoje, a maioria das sociedades indígenas enfrenta dificuldades em relação a sustentabilidade e à gestão de seus territórios. Os que praticam a agricultura perderam parte de suas técnicas de cultivos, suas sementes tradicionais, e tornaram-se monocultores dependentes de insumos comerciais e de bens que não têm como produzir.
As áreas indígenas são ricas em recursos naturais e, em geral, estão localizadas em regiões de fronteira agrícola e de expansão do capital, tornando-se, freqüentemente, alvo de conflitos. Estes se dão, entre outros motivos, por terem sido as terras indígenas vendidas a títulos de propriedade, em passado recente, pela própria União, que atualmente, numa espécie de mecanismo compensatório pela expropriação territorial, concede aos índios a posse permanente das terras, sem que os atuais proprietários, fazendeiros, produtores, empresários, assentados, entre outros segmentos sociais, sejam devidamente indenizados. Esses fatos geram novos conflitos e corroboram para um complexo ideológico presente nos discursos os mais variados, quer seja do senso comum, quer seja dos representantes das camadas mais elitizadas e intelectualizadas, que põem em “xeque” a pureza cultural ou primitividade dos índios quanto à questão de serem ou não índios e, portanto, merecedores ou não de seus direitos constitucionais.
Nesse aspecto, cabe ressaltar, que não existe pureza cultural, todas as sociedades são dinâmicas e é dessa forma que as culturas se reproduzem. O fato de alguns grupos indígenas não usarem cocares, flechas e bordunas e terem passado por um longo processo de descaracterização cultural não quer dizer que não sejam mais índios. A incorporação de rituais, crenças e práticas exógenas pelos índios não significa, necessariamente, que sua cultura deixou de ser autêntica e que, portanto, tais índios passaram a ser “falsos índios” ou “ex-índios”. Os estudos desenvolvidos com as sociedades indígenas, em particular os desenvolvidos por João Pacheco de Oliveira Filho, têm mostrado que elementos externos são ressemantizados e fundamentais para a preservação ou adaptação de organizações sociais e de modos de vida. Além de que, cabe indagar, se seria possível que as coletividades indígenas em contato com o mundo envolvente fossem totalmente refratárias aos fluxos culturais globais e as pressões do capitalismo.
Ainda nesse sentido, cabe esclarecer que os direitos indígenas não decorrem de uma condição de primitividade ou de pureza cultural a ser comprovada nos índios atuais. Eles decorrem, como bem pontua o antropólogo supracitado, pelo fato de serem reconhecidos pelo Estado brasileiro e pela sociedade nacional como descendentes da população autóctone. A tentativa de diferenciar os índios quanto aos seus direitos e de classificá-los pelo grau de primitividade não possui fundamentação científica. Fundamenta-se sim, no preconceito e no desconhecimento da dinâmica cultural das sociedades humanas.
A situação indígena atual, assim como a questão que envolve as relações interétnicas, é complexa e exige análise sob vários pontos de vista. A auto-sustentação tem sido um tema cada vez mais presente na agenda de discussões sobre direitos indígenas, uma vez que afeta a própria existência dessas sociedades, suas interações econômicas com a sociedade envolvente e, em particular, suas relações com o governo brasileiro. As soluções para as problemáticas indígenas impõem desafios aos diversos segmentos da sociedade, quer seja por órgãos políticos–administrativos, quer seja por instituições de pesquisa e desenvolvimento que atuam no país, como a Embrapa, por exemplo.
Atualmente os órgãos públicos federais, estaduais e municipais estão sendo chamados pelo governo brasileiro para atuarem interinstitucionalmente na articulação de ações conjuntas para enfrentar o problema da desnutrição na área indígena Guarani-kaiowá no MS. Cabe lembrar, que essas ações devem buscar como resultado o fortalecimento da produção de alimentos, bem como o da infra-estrutura de produção capazes de gerar rendas na economia de mercado e que, sobretudo, levem em consideração os conhecimentos indígenas e o respeito à sua diversidade, onde a participação dos índios é fundamental na formulação das políticas e na execução das ações, pois as demandas, como bem sabem os índios, não são mais aquelas ditadas por suas culturas tradicionais e sim as decorrentes do seu relacionamento com a sociedade envolvente.
Gercilene Teixeira (gerci@cpap.embrapa.br) é pesquisadora da Embrapa Pantanal, Corumbá-MS, mestre em Antropologia Cultural.
Por Gercilene Teixeira