Variações da Quantidade e da Qualidade dos Recursos Hídricos

Tanto a quantidade como a qualidade das águas sofrem alterações em decorrências de causas naturais ou antrópicas. Entre as causas naturais que alteram o clima e, conseqüentemente, a disponibilidade de água, destacam-se as flutuações sazonais com período de um ano e outras com ciclos de médio e longo prazo, tais como o “El Niño” e os períodos glaciais, além de outras variações climáticas naturais. Outras causas sem um ciclo determinado podem ser classificadas como “catástrofes”.

Entre as ações humanas que podem alterar o balanço hídrico, destacam-se em escala local e regional o desmatamento, a mudança do uso do solo, os projetos de irrigação e a construção de barragens. Na escala planetária, destaca-se a mudança climática global decorrente da alteração das características químicas da atmosfera com gases que promovem o “efeito estufa”.

Causas naturais: a quantidade e a qualidade dos recursos hídricos, que escoam pelo canal principal de uma bacia hidrográfica em condições naturais, dependem do clima e das características físicas e biológicas dos ecossistemas que a compõem. A interação contínua e constante entre a litosfera, a biosfera e a atmosfera, acabam definindo um equilíbrio dinâmico para o ciclo da água, o qual define em última análise, as características e as vazões das águas. Este equilíbrio depende basicamente:

  • das quantidades e distribuição das precipitações: a quantidade de água proveniente das precipitações em uma bacia hidrográfica apresenta variações temporais e espaciais;
  • do balanço de energia: a quantidade da água que é perdida através da evapotranspiração, depende da energia solar disponível, da natureza da vegetação e das características do solo;
  • da geomorfologia: regula o tempo de permanência da água que depende da inclinação das secções transversais e longitudinal da bacia hidrográfica;
  • da natureza e dimensão das formações geológicas: controla o armazenamento da água no solo, no subsolo e determina o fluxo de base dos afluentes e do canal principal;
  • da vegetação natural que cobre a área: controla o balanço de energia, a infiltração da água, a evapotranspiração e a vazão final;
  • da interação das espécies: a atividade dos ciclos biogeoquímicos depende da interação dos organismos vivos, incluindo a microfauna e a microflora.

Qualquer modificação nos componentes do clima ou da paisagem alterará a quantidade, a qualidade e o tempo de resistência da água nos ecossistemas e, por sua vez, o fluxo da água e suas características no canal principal do rio.

Alguns exemplos brasileiros nos quais os recursos hídricos ainda são controlados pelas condições naturais.

Bacia Amazônica:  um exemplo típico são as águas dos rios Solimões e Negro, formadores do Amazonas. O rio Solimões, proveniente da região Andina, possui água com pH aproximadamente 7, sendo rico em nutrientes, apresentando uma coloração amarelada em decorrência dos sedimentos que transporta. O rio Negro, proveniente de áreas cobertas por vegetação, porém com solos predominantemente arenosos, possui pH 4,5, é pobre em nutrientes e apresenta cor escura devido, às substâncias húmicas que transporta, as quais são produzidas pela decomposição incompleta da biomassa nos solos arenosos.

Do ponto de vista quantitativo dos recursos da Amazônia, pode-se afirmar que a quantidade das chuvas e a sua distribuição estão intimamente ligadas à cobertura vegetal formada na maior parte da região por ecossistemas florestais. Pensava-se que as florestas fossem simples conseqüências das condições climáticas. À medida em que a floresta foi se desenvolvendo, as condições iniciais foram se alterando havendo um controle da radiação solar, do tempo de residência da água e do balanço hídrico através da evapotranspiração da floresta. Desta forma, o equilíbrio dinâmico da água que hoje existe na região é aquele definido pela interação da biosfera com a atmosfera. A Bacia Amazônica, hoje, com 6.112.000 km2, recebe uma precipitação média da ordem de 2.460 mm/ano. A vazão do rio Amazonas na foz é calculada em 209.000 m3/s e a evapotranspiração equivale à 1.382 mm/ano, ou seja, 56% da água da chuva volta à atmosfera pela ação das florestas. As estimativas existentes indicam que mais de 50% das precipitações são provenientes dessa recirculação do vapor d’água. O desmatamento poderá assim produzir mudanças no regime de precipitações com diminuição dos recursos hídricos de superfície e aumentar a temperatura da região.

Região semi-árida do nordeste brasileiro: a  região semi-árida do nordeste brasileiro com uma área de 1.000.000 km2, recebe em média 700 mm/ano de chuva, o equivalente à precipitação média da Europa Central. Por que é, então, que no nordeste brasileiro, a situação chega a ficar crítica com a falta de recursos hídricos? É um caso típico, no qual a quantidade e a qualidade dos recursos hídricos ficam definidas pelas condições do clima, da geologia e da geomorfologia. As precipitações na região caem num período curto e 90% se perdem por evapotranspiração. Os 10% restantes formam os rios que correm em curtos períodos e uma pequena fração se infiltra reabastecendo os reservatórios subterrâneos. A quantidade e a qualidade das águas subterrâneas depende da formação geológica. Nas formações cristalinas que cobrem 52% de nordeste semi-árido, as águas são relativamente novas com o tempo de residência de 30 a 300 anos, com máximo de até 2.000 anos. A salinidade varia de 350 a 25.000 ppm de sólidos totais dissolvidos. Os sais predominantes são cloretos de sódio e magnésio.

Os estudos desenvolvidos na região procurando determinar a causa desta salinidade, evidenciaram que grande parte é proveniente de uma concentração progressiva dos sais que formam os núcleos de condensação das águas de chuva e aerosóis. Os núcleos de condensação e os aerosóis são formados  na atmosfera sobre os oceanos e arrastados para o interior do continente pelos ventos e posteriormente dão formação às nuvens que geram as precipitações. A grande perda de água por evapotranspiração faz então com que haja uma concentração dos sais, os quais são lixiviados para os depósitos  subterrâneos. O equilíbrio dinâmico atual existente, que leva às concentrações médias acima indicadas, reflete o balanço de sais trazidos à região através das águas superficiais (rios que correm para o oceano) e pela  descarga subterrânea. Este equilíbrio poderá ser alterado caso sejam bloqueadas todas as saídas de água através de barragens consecutivas sem sangramento dos açudes e também sejam bloqueados os fluxos subsuperficiais. Esta mesma situação crítica é atingida nas áreas irrigadas quando não existe um sistema de drenagem adequado. A salinização dos solos nos projetos de irrigação do nordeste semi-árido é um fenômeno freqüente e bem conhecido.

Região do pantanal: outro exemplo no qual as condições naturais controlam a disponiblidade de água e especialmente a vazão dos rios é o da bacia do rio Paraguai. Os estudos do balanço hídrico indicam que apenas 8% do total de precipitação passa pela parte inferior do canal principal do rio Paraguai, perto de Porto Murtinho. Como resultado deste balanço hídrico, conclui-se que aproximadamente 92% da precipitação acima do local de medida são perdidos através de evaporação de água nas superfícies abertas, evaporação do solo, evaporação direta da água retida pela vegetação e pela transpiração das plantas. Estes valores indicam que o atual equilíbrio dinâmico do balanço hídrico depende da geomorfologia e da vegetação.

As interações entre o rio  e as zonas sujeitas à inundação são complexas. O Pantanal recebe água do rio Paraguai e, ao mesmo tempo, o rio recebe água dessas zonas sujeitas a inundação, dependendo do ritmo e da posição da precipitação local. Os níveis de água no rio Paraguai, e nos outros grandes afluentes, controlam os níveis de água nas zonas sujeitas à inundação, mesmo nas áreas situadas longe do canal principal. Não há informação confiável sobre a situação do lençol de água, mas é razoável supor que os níveis dos lençóis de água também sejam controlados pelo nível do rio. As áreas inundadas do Pantanal também servem como um sistema de transporte para a água que vai do Norte ao Sul.

Variações sazonais: as variações sazonais das precipitações se destacam entre as causas controladoras da oferta de água a curto prazo. No Brasil, tendo em vista as dimensões continentais da variação de latitude indo de aproximadamente 5° N à 35° S, são encontrados climas variados e, conseqüentemente, regimes de precipitação distintos com grande variabilidade. Assim, enquanto na Amazônia existem regiões com precipitações acima de 3.000 mm/ano, no Nordeste Brasileiro são encontradas áreas com precipitações abaixo de 300 mm/ano. O período de chuva também apresenta grande variabilidade, sendo que enquanto em algumas regiões, especialmente a central do país, predominam as chuvas de verão (outubro-março), em outras predominam chuvas no período correspondente ao inverno no hemisfério sul, ou seja, com máxima ao entorno do mês de julho.

A bacia do rio Amazonas apresenta uma situação curiosa, com uma área de aproximadamente 6 milhões de km2 e recebendo uma precipitação média da ordem de 2.460 mm/ano, faz com que o rio Amazonas apresente na sua foz a formidável vazão média de 209.000 m/s. Porém, como parte dos afluentes são provenientes do hemisfério sul e parte do hemisfério norte, o regime do rio apresenta variações características. O canal principal formador do Amazonas, o Apurimac-Ucayale e seu principal afluente, o Marañon, são provenientes da região Andina, e os afluentes da margem direita localizam-se no hemisfério sul, recebendo as precipitações maiores no período do verão (outubro-março). Por outro lado, os afluentes da margem esquerda com suas cabeceiras no hemisfério norte, recebem as precipitações máximas no período de maio-julho.

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Esta situação faz com que, embora no alto Amazonas (Solimões) existam fortes flutuações no nível das águas com oscilações acima de 10 m, a variação de vazão do baixo Amazonas. A variabilidade das precipitações, refletindo-se nas quantidades extremas de água de superfície disponível através dos rios que formam os canais de escoamento dos ecossistemas, pode ser verificada de exemplos de outras regiões. Observa-se que as variações máximas estão relacionadas com as características e dimensões da bacia hidrográfica considerada e das precipitações. Uma variação de vazão ainda maior é encontrada para o rio Camanducaia, também localizado na bacia do Piracicaba.

O fenômeno do “El Niño” – além dessa variações dentro do ano, decorrentes das alterações da declinação do sol para as diversas latitudes do planeta, existem outras causadas por variações climáticas, cujas causas fundamentais não estão totalmente conhecidas. Algumas variações climáticas de médio e longo prazos e as conseqüências variações do balanço hídrico, possuem oscilações cíclicas com períodos variáveis. Estas encontram-se relacionadas às oscilações das atividades solares e às alterações dos parâmetros astronômicos da translação do planeta. Um  dos fenômenos cíclicos, porém com variabilidade grande no período de ocorrência é conhecido como o fenômeno do “El Niño”. No Brasil as variações de precipitação e as conseqüências sobre as temperaturas e o balanço hídrico em várias partes do país, estiveram relacionados com o aparecimento do “El Niño”, que também está relacionado com a diminuição da precipitação na Bacia Amazônica e enchentes nas regiões Sul do país.

Catástrofes naturais: além destas variações climáticas anuais e aquelas com ciclos que se superpõem, mas que estão dentro de uma média, existem outras que afetam o balanço hídrico e que, pelas suas dimensões, devem ser tratadas de forma independente. Algumas das causas destas variações catastróficas já estão incluídas na somatória das causas anteriores, porém em alguns casos, outros fatores são importantes para suas conseqüências finais. As catástrofes que afetam, especialmente as comunidades urbanas como as enchentes de São Paulo e do Rio de Janeiro, são realmente mais devidas a causas antrópicas, pela impermeabilização dos solos e propostas equivocadas no manejo dos recursos hídricos, sem levar em consideração os conhecimentos das variabilidades climáticas naturais de médio e longo prazo.

Variações antrópicas

Variações locais e regionais:  qualquer atividade humana que altere os fatores básicos que determinam o balanço hídrico, acaba por influir na disponibilidade dos recursos hídricos de uma bacia hidrográfica. No Brasil, existem casos já evidentes onde o antropismo melhora a oferta de recursos hídricos, alterando o tempo de residência das águas de superfície nos ecossistemas. É o caso específico da construção de açudes no Nordeste Brasileiro e do sistema de represas nos complexos de hidroeletricidade como no rio Tietê, rio Grande e rio Paraná. Por outro lado, o uso da terra com remoção da cobertura vegetal e com a implantação de uma agricultura sem controle da erosão, normalmente degrada os recursos hídricos, pois aumenta o escorrimento superficial carregando solos que promovem o assoreamento dos rios, lagos e represas. Em especial, estas atividades antrópicas, associadas ao desenvolvimento industrial, à agroindústria e à urbanização, degradam a qualidade dos recursos hídricos.

Mudanças globais de origem antrópica: entre as variações de origem antrópica, as preocupações maiores estão relacionadas com as possíveis mudanças climáticas globais. As informações científicas acumuladas até o presente, indicam que as concentrações dos gases que podem produzir o aquecimento da atmosfera, conhecidos como gases de efeito estufa, estão aumentando de forma contínua e constante na atmosfera terrestre. Estes gases são: o gás carbônico, o metano, os óxidos de nitrogênio e os clorofluorcarbonos (CFCs). 

As evidências científicas das possibilidades das mudanças climáticas globais são as concentrações dos gases de efeito estufa aumentarem desde a era pré-industrial 1750 até 1992, em 30% para o gás carbônico; 145% para o metano; 15% para o óxido de nitrogênio. Os CFCs estão controlados a médio e longo prazo pelo Tratado de Montreal. Estes aumentos que foram acelerados nas últimas décadas estão ligados, principalmente, às atividades antrópicas (uso de combustíveis fósseis, mudanças do uso da terra e atividades agrícolas) . 

As conseqüências destas variações climáticas de origem antrópica para disponibilidade dos recursos hídricos são várias, dependendo da região do Planeta considerada. São previstas diminuição dos estoques de água das geleiras, aumento da umidade do ar em algumas regiões, aumento da umidade do ar em algumas regiões, aumento do número de tufões e furacões e variações da quantidade e qualidade  de água potável nas regiões litorâneas em decorrência da alteração do nível do mar. No caso específico do Brasil, os estudos necessitam ser aprofundados e, em especial, para a região crítica do Nordeste semi-árido. Para o caso da Amazônia, o trabalho terá um desafio ainda maior, porque aquela região está sujeita a dois conjuntos de ações antrópicas que podem modificar o clima: o desmatamento de responsabilidade nacional e as mudanças climáticas globais cujos principais responsáveis são os países desenvolvidos.

Variações da qualidade e quantidade dos recursos hídricos globais: é muito difícil avaliar, claramente, a situação da qualidade da água em nível global, em virtude da falta de bons programas de monitoramento, particularmente nos países em desenvolvimento. O Programa GEMS-Água (Global Environment Monitoring System), do PNUMA, do final dos anos 70, pretendia estabelecer uma rede de monitoramento global que permitisse uma avaliação da evolução da qualidade da água no mundo, mas a falta de recursos para manter e ampliar as estações de monitoramento nos países em desenvolvimento impediu o alcance deste objetivo. A informação disponível, entretanto, nos permite afirmar que o problema da qualidade da água é mais sério do que se pensava anteriormente, em virtude da poluição causada pelos metais pesados, nitratos e micropoluentes orgânicos. O problema é mais grave nos países em desenvolvimento, pela falta de sistemas adequados de monitoramento e controle, e atinge muitos rios e lagos próximos a grandes centros urbanos, regiões costeiras e também os aqüíferos subterrâneos. Isto significa que, se no futuro, padrões de qualidade mais rígidos não forem adotados, algumas fontes de água, em uso hoje, não poderão mais ser utilizadas.

Atualmente, no mundo, menos de 4% dos esgotos domésticos sofrem tratamento adequado, antes de serem descarregados nos rios lagos ou oceanos, provocando sérios problemas de poluição das águas. Pesticidas, metais pesados e até nutrientes em excesso afetam a saúde humana e os ecossistemas e podem inviabilizar o uso da água para a irrigação e para reciclagem.

Fonte: Águas Doces no Brasil – Capital Ecológico, Uso e Conservação. 2.° Edição Revisada e Ampliada. Escrituras. São Paulo – 2002. Organização e Coordenação Científica: Aldo da C. Rebouças; Benedito Braga. Capítulo 02 – Água e o Desenvolvimento Sustentáve