Em vez de jogar alevinos nos rios, a diminuição de estoques pesqueiros deveria ser combatida na origem, que é a devastação ambiental nas margens. É cada dia mais preocupante o modismo que está crescendo de tentar resolver a falta de peixes nos rios e reservatórios através do repovoamento, isto é, introduzindo alevinos criados em cativeiro.
Pelo menos dois aspectos fazem com que o “tiro saia pela culatra”, como diz o dito popular. O primeiro deles é que a introdução de alevinos criados em cativeiro e colocados nos rios e represas, quase sempre provenientes de um casal ou poucos casais, faz com que a variabilidade genética seja muito baixa.
As populações naturais possuem uma grande variabilidade genética pelo fato de serem provenientes de muitos casais que se reproduzem na natureza, selecionados pelas condições naturais do ambiente. Dessa forma, introduções aleatórias, mesmo feitas com as melhores intenções, podem levar à redução dessa variabilidade genética e, eventualmente, comprometer a sobrevivência da espécie.
O segundo diz respeito à introdução de doenças e parasitas que antes não existiam no ambiente natural. Isto acontece porque a criação em cativeiro, em alta densidade, é extremamente propícia ao aparecimento de doenças e propagação de parasitas.
O caso mais conhecido é a Lernia, uma espécie de crustáceo minúsculo, que parasita as brânquias de peixes e pode provocar mortandades maciças em cativeiro. Onde a Lernia foi introduzida em ambientes naturais, por repovoamento de peixes, tornou-se praga, impossível de ser erradicada.
Ainda, o repovoamento é feito quase sempre usando alevinos. Ora, alevinos, como qualquer ser vivo, necessitam de alimento. Ao menos nos rios do Pantanal, a criação dos alevinos se dá nas áreas alagadas durante a cheia, localizadas no baixo curso. Soltar alevinos no rio Cuiabá, como já vem sendo feito perto de Cuiabá e Várzea Grande é improdutivo, pois nesse trecho do rio não há alimento para eles, fora o grande risco de introduzir doenças e parasitas.
Estão faltando peixes?
O que leva as pessoas a querer repovoar rios e represas com alevinos é a idéia de que estão faltando peixes! Mas por que faltam? Devido à degradação ambiental e ao excesso de pesca, ou pesca inadequada. Assim, ao invés de combater as conseqüências promovendo repovoamentos cujos resultados poderão causar mais problemas, a batalha deveria ser em prol da recomposição das condições naturais dos rios, lutando contra a destruição das matas ciliares e da degradação de suas águas pela introdução de agrotóxicos, esgoto de cidades e poluição industrial.
A batalha deveria ser também pela conscientização da população, de que a pesca não pode ultrapassar a capacidade de reposição dos estoques das populações naturais, obedecendo aos limites impostos pela natureza – e referendada pela legislação -, como tamanho mínimo de captura (o que assegura que o peixe se reproduza ao menos uma vez antes de ser pescado), cotas de captura (o que assegura a pesca dentro dos limites da capacidade de suporte do sistema) e período de defeso de reprodução (para assegurar a reprodução e, dessa forma, a renovação dos estoques).
Se assim fizermos, ao invés de repovoamentos inúteis, com todas as suas conseqüências, estaremos efetivamente contribuindo para a manutenção dos peixes, que nos fornecem alimento e lazer.
Períodos de defeso de reprodução
O objetivo básico do estabelecimento de períodos de defeso de reprodução é possibilitar que os peixes possam se reproduzir e repor – ou renovar – os estoques pescáveis para os anos seguintes. Nesse sentido é necessário entender a biologia e a ecologia das espécies consideradas, para que se tenha um uso sustentável, conciliando os interesses econômicos, sociais e ambientais.
O defeso de reprodução no Pantanal é definido em função das espécies de valor econômico, geralmente espécies migradoras que, todo ano, realizam migrações rio acima, onde se reproduzem, ao encontrarem condições adequadas, principalmente para ovos e larvas. A este grupo pertencem o pacu, a piraputanga, o dourado, o pintado, o ximboré, a cachara e a jiripoca, dentre outras. A desova geralmente ocorre nas cabeceiras, após grandes chuvas, quando o nível dos rios sobe, as águas estão turvas e oxigenadas, atendendo às necessidades de oxigenação mais elevada nessa fase inicial de desenvolvimento, bem como de proteção contra a predação nas águas turvas que impedem a visualização dos ovos e larvas pelos predadores.
Os peixes migradores dos rios do Pantanal possuem alta fecundidade e, dependendo da espécie e do tamanho alcançado, uma fêmea pode apresentar em seus ovários mais de um milhão de ovos.
A cada ano, machos e fêmeas alimentam-se no baixo Pantanal onde a alimentação é abundante no período das enchentes e cheias e quando alcançam acúmulo de reservas suficientes para o desenvolvimento das gônadas e para a longa migração até as cabeceiras, iniciam essa longa viagem, que é conhecida popularmente como piracema.
Quando não conseguem acumular reservas suficientes, principalmente por insuficiência de inundação (o ideal é que a inundação alcance pelo menos 5 metros na régua de Ladário, próximo a Corumbá) não migram, ou mesmo quando iniciam a migração, não chegam a completá-la. Em alguns anos é possível observar fêmeas ovadas no baixo Pantanal, como nas proximidades de Corumbá e Baía do Castelo, que se apresentam nessas condições. Quando não conseguem completar a migração ascendente, os ovários entram em regressão e os ovócitos são reabsorvidos. Este fato é particularmente verdadeiro para os exemplares de grande porte, cuja necessidade energética é muito maior.
É preciso ainda considerar que, se um dado estoque de peixes está sendo utilizado, o manejo deve contemplar a proteção do pico da reprodução que, para a maior parte dos peixes de valor econômico, ocorre entre novembro e fevereiro, na cabeceira dos rios, começando com os peixes de escama (curimbatá, pacu, piraputanga, dourado, etc.) e terminando com os peixes de couro (pintado, cachara, jurupensém, jiripoca, etc). Essa seqüência tem lógica, na medida em que as larvas de peixes de couro são predadoras e necessitam encontrar larvas de outros peixes para se alimentarem assim que esgotam os recursos energéticos do vitelo, abrem a boca e iniciam a alimentação externa.
Emiko Kawakami de Resende – Bióloga, doutora em Ciências. Chefe Geral da Embrapa Pantanal. Ex-Secretária de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul
Fonte: Revista Eco 21, Ano XIII, Edição 32, Outubro 2003. (www.eco21.com.br)