Meio Século de Lutas: Uma Visão Histórica da Água

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Em 1949, a Conferência Científica das Nações Unidas sobre Conservação e Utilização dos Recursos Naturais reuniu, pela primeira vez, cientistas e expertos de todas as regiões do Planeta para analisarem a gestão dos recursos naturais num mundo que vinha de sofrer a devastadora II Guerra Mundial. Nessa ocasião não foram abordados temas fundamentais como a degradação dos oceanos, rios e mares, a contaminação industrial, a gestão de dejetos perigosos, a migração rural para centros urbanos, as mudanças climatológicas e o desenvolvimento nuclear.

Um outro antecedente de grande importância foi o Ano Geofísico Internacional, patrocinado pela UNESCO entre 1957 e 1958. Esta iniciativa que contou com a participação de outros setores do complexo da ONU, promoveu um sistema mundial de observação da atmosfera superior, além de coordenar o estudo de zonas remotas, como por exemplo, a Antártica. O Programa Biológico Internacional, desdobramento do Ano Geofísico Internacional, centrou as suas atividades durante um decênio (1964-1974) estudando a produtividade biológica e o bem estar humano.

Nos anos 60, o generalizado processo de descolonização, determinou o ingresso de um considerável número de países recentemente emancipados, principalmente africanos, no cenário político internacional. A conseqüência direta desse fato foi a de que ganharam importância, no debate multilateral, as questões relacionadas com o desenvolvimento econômico. Em 1964, foi realizado o primeiro grande fórum de debates, tendo como tema fundamental as relações entre comércio e industrialização: a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD, onde a questão do uso das águas marítimas fora colocado do ponto de vista econômico e não como de um recurso natural a ser preservado.

Com a entrada maciça dos países em desenvolvimento nas decisões internacionais, ficou evidente que a fenda que separava os países industrializados das economias periféricas, especificamente no debate multilateral e na questão ambiental, era muito mais profunda do que se imaginava. Durante o pós Guerra os protagonistas dos debates eram um reduzido número de representantes das potências hegemônicas com alguns espectadores incidentais. A partir da UNCTAD a multiplicação das vozes fez sentir que as preocupações ambientais estavam disseminadas em todo o Planeta.

Tratado Antártico

Para ordenar esse debate internacional que, pela primeira vez depois da Revolução Industrial, escapava das fronteiras tradicionais, as potências industriais passaram a adotar uma estratégia normativa. O final dos anos 60 e, sobretudo, a década posterior, estão marcados pela realização de grandes encontros internacionais sob o patrocínio da ONU.

Em 1961, um instrumento jurídico internacional inaugurou uma nova visão no campo da colaboração internacional ao ser assinado o Tratado Antártico, no qual se determinou o uso pacífico do Continente Branco. O Brasil assinou o Tratado em 1976.

Como a opinião pública internacional estava influenciada nos anos 60/70 pelo debate generalizado de todas as questões internacionais, o movimento ambientalista mundial buscava propor formas alternativas de organização social e de comportamento em relação à natureza. A questão do meio ambiente transformou-se num fato político impossível de se ignorar. Nos países europeus o “político verde” começou a ganhar espaços nos poderes legislativos e, em alguns casos, até nos executivos municipais.

A idéia de organizar um encontro mundial para discutir os problemas ambientais se consolidou ao final da década de 60. Em 1968, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, sugeriu a realização de uma conferência mundial para tratar dos problemas ambientais. 

Os debates continuaram até 1971, quando a Comissão Econômica para a Europa, organismo da ONU, promoveu o Simpósio sobre Problemas Relativos ao Meio Ambiente, realizado em Praga, Tchecoslováquia. O documento afirma que as medidas disciplinares podiam se “constituir num primeiro passo de controle ambiental”. Era a primeira vez que se falava concretamente em termos de punições para com os poluidores.

Estas conclusões tiveram que percorrer alguns caminhos antes de serem formuladas no seio da ONU. Em 1970, durante o Simpósio das Nações Unidas sobre a Desorganização do Meio Ambiente, realizado em Tóquio, o bloco latino-americano deixou bem claro que existia uma correlação entre o grau de contaminação ambiental e a natureza do sistema sócio-econômico vigente.

Direito do Mar

Três anos antes, na Assembléia Geral da ONU, em 1967, iniciou-se um novo tipo de diálogo, que culminaria na Assembléia-Geral de 1970 ao consolidar o conceito de que determinados recursos naturais são “Patrimônio Comum da Humanidade”. Esta nova visão do entorno começou em 1967 com os debates internacionais sobre os recursos dos fundos marinhos. A não-aceitação do que fora estabelecido em diversos acordos internacionais sobre os assuntos do mar, dava mostras de que o mundo procurava uma nova ordem política e ambiental. Foi assim, em face dessa necessidade que, em 1973, deu-se início a uma Conferência sobre o Direito do Mar. Em Dezembro de 1982, em Montego Bay, Jamaica, a Conferência colocou para assinatura a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. O Brasil ratificou a Convenção em Dezembro de 1988.

Conferência de Estocolmo

A Assembléia-Geral da ONU, em 1971, decidiu convocar para 1972 em Estocolmo, Suécia, a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, primeiro grande evento a analisar e avaliar a temática ambiental do ponto de vista “ambientalmente correto”. Esta conferência consolidou as bases da moderna política ambiental adotada por todos os países, com maior ou menor rigor, nas suas legislações particulares.

No ápice das lutas ecologistas geradas pelo movimento anti-nuclear da década de 60, a Conferência de Estocolmo foi um referencial que gerou o principal estudo da situação ambiental no mundo: o Relatório Brundtland.

Como decorrência da Conferência de Estocolmo, em 1983, foi estabelecida, na ONU, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, presidida pela então Primeira-Ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland. Seu objetivo, em linhas gerais, era o de reexaminar a questão ambiental inter-relacionando-a com a questão do desenvolvimento e, além disso, propor um Programa de Ação em nível mundial. Quatro anos depois, em Abril de 1987, foi publicado o informe final denominado “Nosso Futuro Comum”. Uma vez aprovado o relatório, a ONU emitiu uma resolução dando prosseguimento aos trabalhos da Comissão. Depois de ser publicado e antes de ser apresentado perante a ONU, o informe “Nosso Futuro Comum”, também conhecido como Relatório Brundtland, foi analisado por presidentes, primeiros-ministros, chefes de Estado e outras altas autoridades de mais de 100 países, que adotaram as suas recomendações e, dentro da realidade de cada uma das nações, aplicaram o seu conteúdo nos programas ambientais nacionais.

Conferência de Mar del Plata

Com o caminho aberto pela Conferência do Mar, a ONU decidiu convocar a I Conferência das Nações Unidas sobre a Água que foi realizada em Março de 1977, em Mar del Plata, Argentina. Esta Conferência foi o primeiro encontro especializado para tratar os problemas da água. O crescente consumo de água em dimensão planetária e a pressão exercida pelas instituições oficiais sobre os recursos hídricos em algumas áreas, indicavam o surgimento de uma crise de água em médio prazo que só poderia ser atenuada mediante a adoção de programas de gerenciamento integrado desses recursos. O Plano de Ação de Mar del Plata, foi considerado o mais completo documento referencial sobre recursos hídricos, até a elaboração do capítulo específico sobre a água da Agenda 21.

O número de participantes foi bastante reduzido e esteve composto, basicamente, por técnicos e alguns poucos políticos, não houve participação da sociedade civil. Neste encontro também se aprovou uma recomendação apresentada pela Conferência da ONU sobre Assentamentos Humanos – HABITAT, realizada um ano antes, em 1976, em Vancouver, Canadá, na qual se solicitou a todos os países “fazerem esforços” para fornecer água potável e serviços de saneamento adequados “para todos” até 1990.

Decênio da Água

O Decênio Internacional do Fornecimento de Água Potável e Saneamento foi proclamado pela ONU em Novembro de 1980. Contou com uma ativa participação de governos e agências internacionais, tanto no sentido técnico como financeiro. Este movimento universal teve por finalidade melhorar e promover a cobertura dos serviços de água potável e de saneamento básico para o maior número de pessoas possível, especialmente os setores localizados nos subúrbios das cidades ou nas áreas rurais.

Dez anos depois do lançamento da Década da Água, em Setembro de 1990, em Nova Délhi, Índia, as conclusões apresentadas, sobre esta iniciativa, demonstraram que as expectativas foram frustradas pelos resultados inferiores aos previstos. Mas houve alguns resultados positivos: nos dez anos que separam o encontro de Mar del Plata do de Nova Délhi, os profissionais do setor da engenharia sanitária aprimoraram os seus conhecimentos; doenças endêmicas de veiculação hídrica foram minimizadas ou erradicadas do quadro geral da saúde. A OMS e a OPS estiveram absolutamente compromissadas com o Decênio e forneceram apoio aos países na formulação das políticas de saúde.

Com esse objetivo foi criada, no seio da OPS, coincidindo com o início da Década da Água, a Rede Pan-americana de Informação em Saúde Ambiental. Esta Rede procurou satisfazer não somente a demanda de informação em todos os níveis, como também incentivar a disseminação das informações em toda a América Latina e Caribe. Mesmo com a criação da Rede, as informações ficaram limitadas às organizações de classe e às secretarias de obras e serviços públicos que nessa época centralizavam em quase todos os países a questão da água.

Conferência de Dublin

A segunda grande Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente organizada pela ONU realizou-se em Dublin, Irlanda, em Janeiro de 1992, isto é, poucos meses antes da Conferência do Rio, de Junho de 92. A Conferência de Dublin, que foi também preparatória da RIO’92, teve uma grande repercussão tanto pela quantidade de participantes oficiais quanto pelo número de países e ONGs envolvidas no encontro. Os experts ali reunidos consideraram, pela primeira vez, que a situação dos recursos hídricos caminhava de forma bastante dramática para um ponto crítico.

A Declaração de Dublin registra, de forma inovadora, um enfoque radicalmente novo sobre a avaliação, aproveitamento e gestão dos recursos hídricos, principalmente da água doce. Nela afirma-se que esta otimização somente pode se obter mediante um compromisso político e a participação dos mais altos níveis dos governos em conjunto com a sociedade civil, com as comunidades envolvidas. Os participantes da Conferência de Dublin produziram recomendações e um programa de ação sob o título de “A Água e o Desenvolvimento Sustentável”.

O primeiro Princípio da Declaração de Dublin afirma que: “a água doce é um recurso finito e vulnerável, essencial para garantir a vida, o desenvolvimento e o meio ambiente”.

Dublin foi um verdadeiro marco na história ambiental e um celeiro de informações para os jornalistas especializados em temas ambientais. Nesse encontro se explicitou muito claramente a relação entre a água e a diminuição da pobreza e das doenças; a proteção e as medidas de proteção contra os desastres naturais; a conservação e o reaproveitamento da água; o desenvolvimento urbano sustentável; a produção agrícola e o fornecimento de água potável ao meio rural; a proteção dos sistemas aquáticos e as questões transfronteiriças e se reconheceu a existência de conflitos geopolíticos derivados da posse das bacias hidrográficas.

Fórum Mundial da Água

A cada três anos, se reúnem no Fórum Mundial da Água representantes governamentais, de organizações internacionais, de ONGs, de instituições financeiras e de indústrias, além de cientistas, especialistas em assuntos hídricos, empresários e acadêmicos. Nesta ocasião, na convocação de Kyoto, participam como delegados mais de 5.000 especialistas e políticos, inclusive Ministros de Estado. Para cobertura do encontro se registraram mais de 3.000 jornalistas e foi criado um mecanismo de debate na Internet denominado Water Media Network.

A idéia deste encontro internacional surgiu em 1996 no âmbito do Conselho Mundial de Água, para discutir os principais assuntos relacionados com a gestão de recursos hídricos. O I Fórum realizou-se em 1997, em Marraquech, Marrocos e o II Fórum em Haia, Holanda, em 2000. O III Fórum Mundial da Água ocorre concomitantemente em três cidades japonesas (Kyoto, Shiga e Osaka) no período de 16 a 23 de março de 2003.

O Fórum discute as ações tomadas pelos diferentes países para implementar o manejo integrado dos recursos hídricos e busca soluções que permitam à comunidade internacional atingir os objetivos da Declaração do Milênio realizada em Setembro de 2000, em Nova Iorque, durante a 55ª Sessão das Nações Unidas e os da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em Johanesburgo, em Setembro de 2002, que buscam reduzir pela metade, até 2015, o número de pessoas sem acesso a água potável e a saneamento básico.

No segmento Ministerial do Fórum, 5 mesas-redondas temáticas, tratarão especificamente os seguintes pontos:

1) água potável e saneamento;

2) água para a produção de alimentos e desenvolvimento rural;

3) prevenção da poluição e conservação de ecossistemas;

4) mitigação de desastres e gestão de risco; e

5) gestão dos recursos hídricos e compartilhamento de seus benefícios. Está prevista ainda sessão plenária para apresentação dos relatórios das mesas-redondas, bem como o exame e adoção de “Declaração Ministerial” a ser assinada por mais de 100 Ministros.

Os Ministros participarão ainda de um “diálogo” multissetorial com representantes dos diferentes setores presentes no Fórum. Além da “Declaração Ministerial”, o III Fórum deverá aprovar documento intitulado “Programa de Ações para a Água”, uma compilação de ações concretas de governos e organizações internacionais voluntariamente submetidas aos organizadores do evento.

A delegação do Brasil contou com a participação de representantes do Itamaraty, do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério de Ciência e Tecnologia, bem como do Diretor-Presidente e do Diretor da Agência Nacional da Água – ANA, Jerson Kelman. O Brasil será representado, no segmento ministerial, pelo Secretário Nacional de Recursos Hídricos, João Bosco Senra.

Na realidade, as discussões em torno dos temas a serem tratados no III Fórum Mundial da Água já foram objeto de estudos prévios em encontros internacionais, entre os quais merecem destaque o IV Dialogo Inter-Americano de Recursos Hídricos, realizado em Foz do Iguaçu em 2000, a Conferência Internacional sobre Água Doce, realizada em Bonn, Alemanha, em Dezembro de 2001, e a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável de Johanesburgo, em Setembro de 2002.

Ano Internacional da Água Doce

A Assembléia-Geral da ONU declarou o ano 2003 como Ano Internacional da Água Doce. A resolução, produto de uma iniciativa do governo do Tajiquistão, foi adotada em 20 de Dezembro de 2000, tendo sido apoiada por 148 países. O texto da resolução convida aos Governos, ao sistema da ONU e aos outros atores a aproveitarem esta oportunidade para sensibilizar a opinião pública sobre a importância do uso e da gestão dos recursos hídricos. Esta resolução também faz um apelo aos governos, organizações nacionais e internacionais, ONGs e ao setor privado para que juntos contribuam de forma voluntária na promoção do Ano Internacional da Água Doce.

A divulgação no dia 22 de Março, Dia Internacional da Água, do Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos – Água para as Pessoas, Água para a Vida durante o III Fórum Mundial da Água de Kyoto representa um dos pontos altos do encontro.

O Relatório oferece uma visão mais completa e atualizada sobre o estado em que se encontram os recursos hídricos nos dias de hoje. Este documento, que representa a mais importante contribuição intelectual para o Fórum e para o Ano Internacional da Água Doce, foi coordenado pela UNESCO.

Para que este relatório fosse escrito, um total de 23 áreas que tratam da questão da água no sistema da ONU participaram da criação do documento. Pela primeira vez se reuniram para poder monitorar o progresso alcançado na luta empreendida para atingir os objetivos relacionados à água nos campos da saúde, alimentação, ecossistemas, cidades, indústria, energia, gestão de risco, avaliação econômica, divisão de recursos e governança.  

René Capriles – Editor da ECO 21
Fonte: Revista ECO 21