{"id":647,"date":"2009-01-05T15:20:39","date_gmt":"2009-01-05T15:20:39","guid":{"rendered":""},"modified":"2021-07-10T20:35:40","modified_gmt":"2021-07-10T23:35:40","slug":"enfim_uma_br_sem_defeitos","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/ecoturismo\/artigos\/enfim_uma_br_sem_defeitos.html","title":{"rendered":"Enfim, uma BR sem defeitos"},"content":{"rendered":"\n

Para uma terra onde toda estrada federal cai aos peda\u00e7os, a Rodovia das Flores \u00e9 um modelo de sucesso na administra\u00e7\u00e3o p\u00fablica brasileira. Ela caiu aos peda\u00e7os mesmo, de uma vez por todas. O que em seu caso n\u00e3o deixa de ser um melhoramento, porque tirou do mapa uma BR que nunca chegou a lugar nenhum e, se chegasse, teria ligado o Rio de Janeiro a Minas Gerais cortando o cora\u00e7\u00e3o das Agulhas Negras. E nem \u00e9 preciso dizer o que costuma fazer o asfalto com as melhores paisagens deste pa\u00eds.<\/p>\n\n\n\n

Como o governo a deixou inacabada, as chuvas acabaram com ela nas \u00faltimas d\u00e9cadas, picotando de ravinas o trecho de Serra da Mantiqueira que se pendura no Vale do Para\u00edba. Intransit\u00e1vel, tornou-se t\u00e3o fechada que em poucos anos o mato a engoliu completamente, reduzindo-a a bem menos do que uma trilha na vegeta\u00e7\u00e3o que tapa o ch\u00e3o e barra o caminho com uma tran\u00e7a de bambus e cip\u00f3s. E, com esses retoques finais, tornou-se uma esp\u00e9cie de tesouro enterrado no Parque Nacional do Itatiaia.<\/p>\n\n\n\n

Mesmo para quem a conheceu em outros tempos, quando era poss\u00edvel percorr\u00ea-la at\u00e9 de carro, desde que o dono e a suspens\u00e3o fossem valentes, ela parece mais inteira que nunca no peda\u00e7o que a floresta recuperou. Sobretudo agora, que entrou nos planos de Leo Nascimento, o gerente do Parque, reabri-la como se deve \u2013 ou seja, sem estragar o que a interdi\u00e7\u00e3o consertou. \u201cQuero transform\u00e1-la numa trilha reservada a visitantes que possam tirar o melhor proveito dela tal como est\u00e1 hoje. Grupos de observadores de p\u00e1ssaros, por exemplo\u201d, diz ele.<\/p>\n\n\n\n

Pelo projeto, eles ganhariam para come\u00e7o de conversa oito quil\u00f4metros de picada. \u00c9 a parte da antiga estrada que sai da ponte do Maromba, ponto final dos autom\u00f3veis na sede do Parque, e leva ao Lamego, um abrigo de alvenaria que resistiu bravamente aos anos de abandono no meio do mato. Com uma faxina em regra e uma extensa reforma hidr\u00e1ulica, que Nascimento avalia em 120 mil reais, ele estaria pronto para voltar a receber h\u00f3spedes – gente que se contente com beliche sem roupa de cama, mas n\u00e3o abra m\u00e3o do luxo de ter um fil\u00e9 exclusivo de mata prim\u00e1ria servido todo dia na porta de casa.<\/p>\n\n\n\n

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O Lamego \u00e9 heran\u00e7a de uma farta estrutura de apoio \u00e0 pesquisa que, gra\u00e7as ao padr\u00e3o de obras p\u00fablicas vigente no Estado Novo, j\u00e1 foi muito extensa em Itatiaia. A rede de instala\u00e7\u00f5es se arruinou nas d\u00e9cadas de aperto, em que o Parque n\u00e3o tinha dinheiro para nada, exceto para gastar em bobagens, como a constru\u00e7\u00e3o de churrasqueiras para quem n\u00e3o tem mais o que fazer na beira de um rio cristalino ou assustadoras escadas de concreto para democratizar o banho de cachoeira.<\/p>\n\n\n\n

H\u00e1 tr\u00eas anos, Nascimento est\u00e1 restaurando passo a passo os ref\u00fagios. Hoje o Parque tem tr\u00eas casas de h\u00f3spedes s\u00f3 para pesquisadores e um ref\u00fagio de alta montanha para 38 pessoas. O resultado \u00e9 uma safra de teses sobre a geologia, a fauna e a flora de Itatiaia como n\u00e3o se colhia em seus 30 mil ha desde o fim dos anos 40. Mais de 50 projetos de pesquisa esquadrinham o Parque neste momento. E, em janeiro, os boletins do PNI, interrompidos em 1949, voltaram a publicar trabalhos cient\u00edficos sobre a regi\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

Nos trinta e tantos quil\u00f4metros que o mato recapeou existem, al\u00e9m do Lamego, mais dois ref\u00fagios perdidos no Parque. Do Massena, bela tapera de pedra plantada no planalto das Agulhas Negras, s\u00f3 a sala da lareira ficou de p\u00e9, para atestar o tamanho das ambi\u00e7\u00f5es arquitet\u00f4nicas que inspiraram sua constru\u00e7\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

Perto dele, na montanha coberta pelos campos de altitude, ficam as sobras de uma casa onde, at\u00e9 meados do s\u00e9culo passado, moravam duas irm\u00e3s, mantendo sozinhas naquele fim de mundo um posto de observa\u00e7\u00e3o meteorol\u00f3gica.<\/p>\n\n\n\n

Elas costumavam se queixar das on\u00e7as que devastavam os burros de sua tropa de abastecimento.<\/p>\n\n\n\n

Na vizinhan\u00e7a fica a torre de televis\u00e3o que inaugurou em 1956 as transmiss\u00f5es de imagens entre o Rio de Janeiro e S\u00e3o Paulo. Est\u00e1 inteira. Mas os dois apartamentos que mantinham l\u00e1 em cima os operadores foram desertados na d\u00e9cada de 90, depois que a estrada desandou irremediavelmente. Abaixo, mas ainda a quase dois mil metros de altitude, est\u00e1 o que restou do Macieiras, um chal\u00e9 alpino quase centen\u00e1rio.<\/p>\n\n\n\n

O Parque Nacional do Itatiaia j\u00e1 o encontrou ali, quando foi criado em 1937. Vinha de um programa do Minist\u00e9rio da Agricultura para estimular o cultivo de frutas europ\u00e9ias, uvas inclusive, no alto da Mantiqueira, s\u00f3 porque o Pa\u00eds era incapaz de imaginar algo melhor para fazer com aquela Serra.<\/p>\n\n\n\n

Mas o projeto que indiscutivelmente deu certo em Itatiaia foi devolv\u00ea-la \u00e0 natureza, uma id\u00e9ia radical que s\u00f3 pegou com muita relut\u00e2ncia.<\/p>\n\n\n\n

O Macieiras j\u00e1 foi o mais ex\u00f3tico dos abrigos do Parque, um pomar de ma\u00e7\u00e3s e p\u00earas plantado no meio da floresta. Est\u00e1 reduzido a poucas paredes de madeira descascada e meio telhado de zinco ainda capaz de resistir a tempestades torrenciais, t\u00edpicas do lugar. Sobrevive entre velhos ciprestes que a mata vai aos poucos engolindo.<\/p>\n\n\n\n

A maioria de suas portas foi arrancada das dobradi\u00e7as para servir de estrado a campistas. O vaso sanit\u00e1rio est\u00e1 de sentinela na varanda esburacada. N\u00e3o h\u00e1 uma t\u00e1bua onde algu\u00e9m n\u00e3o tenha gravado o memorial de sua estadia. Fora, os canteiros est\u00e3o revolvidos por varas de queixadas. Em suma, \u00e9 o lugar perfeito para quem gosta de lugares perfeitos e pode um dia ser reincorporado aos roteiros de Itatiaia, se forem reabertos os 12 quil\u00f4metros de picada entre o Lamego e o Macieiras.<\/p>\n\n\n\n

Esse, pelo menos, \u00e9 o projeto do gerente Leo Nascimento que, como qualquer iniciativa nascida numa unidade de conserva\u00e7\u00e3o, para vingar precisa que suas ra\u00edzes peguem fora dos limites do Parque nacional. Em Bras\u00edlia, por exemplo. Mesmo quando se trata de transformar em patrim\u00f4nio p\u00fablico o que foi conquistado por obra e gra\u00e7a da decad\u00eancia. A Rodovia das Flores \u00e9 exemplo de desperd\u00edcio cravejado de velharias arruinadas. Mas a mata que tomou seu lugar \u00e9 uma novidade que est\u00e1 pedindo para ser devidamente administrada.<\/p>\n\n\n\n

Marcos S\u00e1 Corr\u00eaa
\nFonte: Revista Eco 21, Ano XIII, Edi\u00e7\u00e3o 76, Mar\u00e7o 2003. (www.eco21.com.br)
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