{"id":638,"date":"2009-01-05T14:29:58","date_gmt":"2009-01-05T14:29:58","guid":{"rendered":""},"modified":"2021-07-10T20:35:41","modified_gmt":"2021-07-10T23:35:41","slug":"agua_e_turismo","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/ecoturismo\/artigos\/agua_e_turismo.html","title":{"rendered":"\u00c1gua e Turismo"},"content":{"rendered":"\n

Podemos reconhecer tr\u00eas grandes dom\u00ednios na superf\u00edcie do planeta. O maior deles \u00e9 a talassosfera, a esfera formada pelas \u00e1guas marinhas. A segunda \u00e9 a epinosfera, constitu\u00edda pela terra firme. A terceira \u00e9 a limnosfera, reunindo os ecossistemas aqu\u00e1ticos continentais superficiais e subterr\u00e2neos.<\/p>\n\n\n\n

H\u00e1 quem diga que a Terra deveria chamar-se planeta \u00c1gua, j\u00e1 que 70% da sua superf\u00edcie \u00e9 dominada pelos oceanos. Em termos de \u00e1rea, de fato, a \u00e1gua \u00e9 soberana. Em termos de volume e de massa, por\u00e9m, as rochas duras e fragmentadas em diversos graus prevalecem. Sob a mais profunda fossa abissal existe rocha de alguma forma.<\/p>\n\n\n\n

Sabe-se tamb\u00e9m que a \u00e1gua \u00e9 de vital import\u00e2ncia para os seres vivos, quase todos eles apresentando em seus organismos uma composi\u00e7\u00e3o semelhante \u00e0 superf\u00edcie do planeta: 70% de l\u00edquido. E n\u00e3o apenas no corpo a \u00e1gua \u00e9 vital, sen\u00e3o tamb\u00e9m que no entorno de cada indiv\u00edduo.<\/p>\n\n\n\n

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O ser humano e a \u00e1gua<\/strong><\/p>\n\n\n\n

Desde os prim\u00f3rdios do Homo sapiens e mesmo dos homin\u00eddeos, a \u00e1gua cumpre v\u00e1rias fun\u00e7\u00f5es, al\u00e9m de manter o organismo em equil\u00edbrio. Nas antropossociedades de economia extrativista e de vida n\u00f4made, os ecossistemas aqu\u00e1ticos marinhos e continentais eram fonte de alimento, meio de higiene e via de comunica\u00e7\u00e3o. O naturalista alem\u00e3o Hermann Burmeister, empreendendo uma expedi\u00e7\u00e3o cient\u00edfica no Brasil do S\u00e9culo 19, escreveu que os \u00edndios eram anf\u00edbios, pois adoravam viver na \u00e1gua dos rios.<\/p>\n\n\n\n

Para as antropossociedades pr\u00e9-urbanas de economia rural e vida sedent\u00e1ria, a \u00e1gua, al\u00e9m dos usos anteriores, servia tamb\u00e9m para a irriga\u00e7\u00e3o agr\u00edcola e dessedenta\u00e7\u00e3o do gado. Por sua vez, as sociedades hist\u00f3ricas viveram em estreita depend\u00eancia da \u00e1gua, seja drenando seu excesso, seja irrigando os solos \u00e1ridos para a agropecu\u00e1ria. Basta examinar as civiliza\u00e7\u00f5es mesopot\u00e2mica, eg\u00edpcia e andina em suas origens.<\/p>\n\n\n\n

Por mais que os ecossistemas aqu\u00e1ticos marinhos e continentais fossem usados para a recrea\u00e7\u00e3o, n\u00e3o se pode falar em seu aproveitamento para o turismo, visto que esta atividade nasce no ocidente, no S\u00e9culo 19.<\/p>\n\n\n\n

Em O Territ\u00f3rio do Vazio, um livro que j\u00e1 se tornou cl\u00e1ssico, Alain Corbin demonstra que a praia deixou de ser um lugar de desembarque e de pescadores e passou tamb\u00e9m a ser apreciada pela aristocracia e pela elite intelectual como um territ\u00f3rio a ser freq\u00fcentado para banhos, caminhadas, cavalgadas e temporadas. A praia \u00e9 criada pelo imagin\u00e1rio europeu no final do S\u00e9culo 18 e merecer\u00e1 obras liter\u00e1rias de prosa e poesia. Esta atra\u00e7\u00e3o se estende por todo o S\u00e9culo 19 e chega aos nossos dias.<\/p>\n\n\n\n

H\u00e1, por\u00e9m, uma diferen\u00e7a significativa entre a maneira de olhar a praia nos S\u00e9culos 18, 19 e 20 em compara\u00e7\u00e3o ao S\u00e9culo 21. O ponto de encontro entre a talassosfera e a epinosfera foi incorporado \u00e0 cultura europ\u00e9ia como local para tratamento de doen\u00e7as. Proliferaram as praias medicinais por toda a Europa e o mundo europeizado.<\/p>\n\n\n\n

No Brasil, havia praias cercadas, com hot\u00e9is em que pessoas enfermas se hospedavam para recuperar a sa\u00fade. Acreditava- se que o sal e a \u00e1gua fria e limpa lavavam as doen\u00e7as do corpo e da alma. Tamb\u00e9m os rios adquiriram este significado no imagin\u00e1rio ocidental. Gilberto Freyre, no intuitivo livro Nordeste, de 1937, analisa a rela\u00e7\u00e3o da lavoura canavieira com as \u00e1guas continentais. Diz ele que, na fase do engenho, que perdurou do S\u00e9culo 16 ao final do S\u00e9culo 19, o ser humano aceitou os rios com suas curvas e caprichos, sem macular em demasia suas \u00e1guas. Nelas, banhavam-se nuas mo\u00e7as brancas e doentes pelo confinamento residencial e pelo uso de roupas inadequadas. <\/p>\n\n\n\n

As casas, prossegue ele, tinham suas frentes voltadas para os rios, com trapiches por onde desembarcavam seus propriet\u00e1rios e agregados bem como visitantes.<\/p>\n\n\n\n

Era poss\u00edvel beber de suas \u00e1guas sem filtra\u00e7\u00e3o ou fervura, ainda que houvesse uma verdadeira avers\u00e3o pelas \u00e1guas paradas das lagoas e dos brejos. O advento da usina e do engenho central movidos a vapor, mudou a rela\u00e7\u00e3o da agroind\u00fastria sucro-alcooleira com os rios. Pouco a pouco, as casas lhes viraram as n\u00e1degas, que passaram a despejar nas \u00e1guas a calda quente e f\u00e9tida resultante da produ\u00e7\u00e3o do a\u00e7\u00facar e do \u00e1lcool.<\/p>\n\n\n\n

As \u00e1guas e o turismo<\/strong><\/p>\n\n\n\n

S\u00f3 final do S\u00e9culo 19 e princ\u00edpio do S\u00e9culo 20, as \u00e1guas, j\u00e1 dessacralizadas pela sociedade industrial, passam a despertar interesse recreativo e tur\u00edstico. Marcos Polette explica como um rio, uma lagoa e uma praia passam de para\u00edso a inferno. Primeiramente, aparece um rica\u00e7o num ecossistema aqu\u00e1tico r\u00fastico, habitado, no m\u00e1ximo, por comunidades tradicionais de pescadores. Suas belezas naturais motivam-no a conseguir um terreno por meios l\u00edcitos ou il\u00edcitos, onde constr\u00f3i uma casa para os finais de semana e para os meses de veraneio.<\/p>\n\n\n\n

O encanto do local leva-o a convidar amigos para passarem fins de semana ou temporadas. Esses tamb\u00e9m se interessam em adquirir um terreno e construir uma casa. O processo se repete e se multiplica. Os intrusos passam, ent\u00e3o, a pleitear do poder p\u00fablico a pavimenta\u00e7\u00e3o da estrada de acesso para facilitar a viagem. Por ela come\u00e7am a chegar aqueles que pretendem passar apenas um dia. Para atend\u00ea-los, aparecem os construtores de pousadas e de hot\u00e9is. Casas mais simples passam a ser constru\u00eddas. A economia das comunidades tradicionais \u00e9 desmantelada. Os primitivos moradores s\u00e3o empregados pelos donos de mans\u00f5es, pela rede hoteleira e pelo com\u00e9rcio ou s\u00e3o expulsos do lugar.<\/p>\n\n\n\n

Assim, o turismo autof\u00e1gico acaba subtraindo dos ecossistemas aqu\u00e1ticos marinhos e continentais a beleza que estimulou a sua ocupa\u00e7\u00e3o. Depois de tornar insuport\u00e1vel o atrativo, os pioneiros ricos saem \u00e0 procura de outros lugares para iniciar o mesmo processo. Viveram esta trajet\u00f3ria as praias de Tijuca, de Leblon e Ipanema, de Copacabana, de Cabo Frio e B\u00fazios, de Guarapari e arredores, da Bahia e do Nordeste, de um modo geral. O mesmo sucedeu com as lagoas da Regi\u00e3o dos Lagos do Estado do Rio e com quase todos os rios.<\/p>\n\n\n\n

O ecologismo, o turismo e as \u00e1guas<\/strong><\/p>\n\n\n\n

A crise ambiental da atualidade est\u00e1 levando \u00e0 constru\u00e7\u00e3o de um novo paradigma ou a uma nova atitude diante da natureza. O ecologismo \u00e9 que melhor a expressa. Praias, rios e lagoas n\u00e3o s\u00e3o apenas as bordas do mar ou as margens que canalizam um curso d?\u00e1gua ou que encerram uma por\u00e7\u00e3o dela. S\u00e3o ecossistemas em que a \u00e1gua, posto que vital, \u00e9 um dos componentes de um todo complexo incluindo solo, subsolo, estrutura geol\u00f3gica, clima e seres vivos. Como ensina a ecologia, os ecossistemas, por mais generosos que sejam, t\u00eam limites. Se estes s\u00e3o infringidos at\u00e9 o ponto de retorno poss\u00edvel, eles tendem a restabelecer o equil\u00edbrio. Caso contr\u00e1rio, \u00e9 preciso a interven\u00e7\u00e3o humana para restaur\u00e1-los.<\/p>\n\n\n\n

Em resumo, os ecossistemas aqu\u00e1ticos marinhos e continentais s\u00e3o finitos e devem ser respeitados na sua singularidade. Eles n\u00e3o s\u00e3o dep\u00f3sito de lixo e esgoto. Habitam-no plantas, animais e outros organismos indispens\u00e1veis \u00e0 sua sa\u00fade.<\/p>\n\n\n\n

Estamos longe ainda de observar os preceitos do novo paradigma. A maioria das pessoas continua deixando a \u00e9tica na ponta de um pau, como fez Macuna\u00edma ao deixar a Amaz\u00f4nia, quando colocam os p\u00e9s numa praia, num rio ou numa lagoa. Diante de n\u00f3s, vislumbramos dois horizontes. Um deles foi bem descrito por Ign\u00e1cio de Loyola Brand\u00e3o no romance N\u00e3o Ver\u00e1s Pa\u00eds Nenhum, com praias cercadas e interditadas para o banho, devido \u00e0 sua polui\u00e7\u00e3o, e com rios e lagoas contaminados e secos. O outro consiste no esfor\u00e7o de mudan\u00e7as culturais, de prote\u00e7\u00e3o aos ecossistemas aqu\u00e1ticos e de restaura\u00e7\u00e3o dos que foram degradados por um turismo consumista e predat\u00f3rio.<\/p>\n\n\n\n

Por Arthur Soffiati
\nFonte: Revista Eco 21, Ano XIII, Edi\u00e7\u00e3o 77, Abril 2003.
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