{"id":3079,"date":"2010-08-25T15:38:58","date_gmt":"2010-08-25T15:38:58","guid":{"rendered":""},"modified":"2021-07-10T19:16:25","modified_gmt":"2021-07-10T22:16:25","slug":"o_acai_do_para_e_o_mundo","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/amazonia\/artigos\/o_acai_do_para_e_o_mundo.html","title":{"rendered":"O a\u00e7a\u00ed do Par\u00e1 e o mundo"},"content":{"rendered":"\n

Antigo versinho, de largo uso local, revela um dos principais atrativos do Estado: \u201cQuem vem ao Par\u00e1, parou; tomou a\u00e7a\u00ed, ficou\u201d. Mas n\u00e3o eram muitas as pessoas que iam ao Par\u00e1. E nem todas elas apreciavam o a\u00e7a\u00ed, que continuou a ser um patrim\u00f4nio exclusivo dos paraenses e, em menor grau, de outros Estados da Amaz\u00f4nia. Em 2000 a situa\u00e7\u00e3o come\u00e7ou a mudar, r\u00e1pida e intensivamente. Disparado o maior produtor nacional, o Par\u00e1 extraiu naquele ano 380 toneladas, quase exclusivamente para o consumo interno. No ano passado, a produ\u00e7\u00e3o alcan\u00e7ou quase 10 mil toneladas \u2013 e se tornou insuficiente para suportar a demanda.<\/p>\n\n\n\n

Na onda da alimenta\u00e7\u00e3o natural, da busca pela juventude prolongada e pela sa\u00fade total, o a\u00e7a\u00ed entrou de vez na dieta de naturalistas, macrobi\u00f3ticos, atletas e integrantes da terceira idade. \u00c9 oferecido em quase todos os Estados brasileiros e foi aceito pelos Estados Unidos e a Austr\u00e1lia, que importam quantidades crescentes de a\u00e7a\u00ed. \u00c9 a fruta nativa de maior presen\u00e7a fora da Amaz\u00f4nia, um raro caso de sucesso de um produto tipicamente local. Sua cultura dever\u00e1 continuar a se expandir exponencialmente pelos pr\u00f3ximos anos. Embora os paraenses apostassem nos encantos do suco extra\u00eddo da vistosa palmeira, jamais podiam supor que ela conquistaria milh\u00f5es de admiradores espalhados al\u00e9m das suas divisas, de uma forma que horroriza o consumidor tradicional. O belenense padr\u00e3o toma, praticamente todos os dias, um prato do \u201cvinho\u201d de a\u00e7a\u00ed puro e grosso.<\/p>\n\n\n\n

Extra\u00eddos da copa da palmeira, que pode chegar a 30 metros de altura, por uma pessoa h\u00e1bil em subir pelo tronco fino e liso, os frutos s\u00e3o colocados numa m\u00e1quina (inventada em Bel\u00e9m mesmo) que faz descaro\u00e7amento e amassa a polpa em \u00e1gua, deixando passar um l\u00edquido com um tom t\u00e3o carregado de roxo que chega a parecer negro. A denomina\u00e7\u00e3o popular de vinho, dada a essa cauda encorpada, se revelou s\u00e1bia \u00e0 medida que as pesquisas sobre o a\u00e7a\u00ed se aprofundavam. Quem o experimenta tem dificuldade de definir o paladar. No passado, sem informa\u00e7\u00f5es sobre o valor nutritivo e medicinal do fruto, quem experimentava costumava reagir com desagrado porque o gosto era terroso, de palha. Um novo teste, por\u00e9m, abriu uma nova porta \u00e0 percep\u00e7\u00e3o. Um pesquisador n\u00e3o iniciado no ritual do a\u00e7a\u00ed disse que seu paladar \u00e9 uma mistura de chocolate e de vinho tinto. Mais informado, seu ju\u00edzo deve ter sido influenciado pelas qualidades qu\u00edmicas do produto, que o tornaram um sucesso de p\u00fablico nos mais diferentes audit\u00f3rios.<\/p>\n\n\n\n

O poder antioxidante do a\u00e7a\u00ed \u00e9 33 vezes maior do que o da uva na elimina\u00e7\u00e3o do colesterol e dos radicais livres, superando nessa medida os atributos do vinho. \u00c9 ainda cinco vezes maior do que a do Gingko Biloba, produto fitoterap\u00eautico utilizado no mundo inteiro. Seu suco tem um valor energ\u00e9tico duas vezes superior ao do leite. Tem grande quantidade de ferro e de fibras, que favorece o tr\u00e2nsito intestinal. Com significativo teor de prote\u00ednas, c\u00e1lcio e pot\u00e1ssio, \u00e9 considerado uma das mais nutritivas frutas da Amaz\u00f4nia, perdendo apenas para a castanha-do-par\u00e1. Todas essas qualidades ampliaram o leque de usos dados ao a\u00e7a\u00ed quando ele transp\u00f4s os limites do Par\u00e1, onde apenas o vinho era tomado, com acompanhamento de farinha, a\u00e7\u00facar, uma ou outra fruta, peixe, camar\u00e3o e carne seca. Hoje, o a\u00e7a\u00ed se apresenta com xarope de guaran\u00e1, mam\u00e3o, morango, maracuj\u00e1, cereais, suco de laranja, leite. As combina\u00e7\u00f5es e varia\u00e7\u00f5es avan\u00e7am ao sabor da imagina\u00e7\u00e3o de quem espera potencializar ainda mais os benef\u00edcios do fruto.<\/p>\n\n\n\n

Uma consequ\u00eancia dessa voragem \u00e9 reduzir a participa\u00e7\u00e3o do pr\u00f3prio a\u00e7a\u00ed na mistura, o que j\u00e1 acontece com ess\u00eancias amaz\u00f4nicas utilizadas na cosm\u00e9tica ou mesmo na fitoterapia, em propor\u00e7\u00e3o muito pequena (embora a embalagem declare o contr\u00e1rio). Enquanto o custo for relativamente alto e a validade do produto reduzida, a dilui\u00e7\u00e3o do a\u00e7a\u00ed puro ser\u00e1 uma conting\u00eancia comercial. S\u00f3 assim render\u00e1 maiores lucros.<\/p>\n\n\n\n

Com o desvio de parcelas cada vez maiores da produ\u00e7\u00e3o para fora da Amaz\u00f4nia, em virtude dos pre\u00e7os mais elevados que s\u00e3o oferecidos, vai se tornando cada vez mais remota a possibilidade de fazer com o a\u00e7a\u00ed o que os franceses fizeram com o seu vinho: classificar um terroir (leia-se terro\u00e1) do a\u00e7a\u00ed. Qualquer dicion\u00e1rio franc\u00eas define o terroir como \u201cproduto pr\u00f3prio de uma \u00e1rea limitada\u201d. O terroir \u00e9 um conjunto de terras sob a a\u00e7\u00e3o de uma coletividade social congregada por rela\u00e7\u00f5es familiares e culturais e por tradi\u00e7\u00f5es de defesa comum e de solidariedade da explora\u00e7\u00e3o de seus produtos, acrescentam os tratados. H\u00e1 um terroir espec\u00edfico para a valorizad\u00edssima champanhe francesa na regi\u00e3o da Champagne. Quem compra uma garrafa dessa bebida paga um valor maior quando sua origem \u00e9 atestada.<\/p>\n\n\n\n

Conforme argumentou um especialista, o terroir, na verdade, \u00e9 revelado, no vinho, pelo homem, pelo saber-fazer local. \u201cO terroir atrav\u00e9s dos vinhos se op\u00f5e a tudo o que \u00e9 uniformiza\u00e7\u00e3o, padroniza\u00e7\u00e3o, estandardiza\u00e7\u00e3o e \u00e9 convergente ao natural, ao que tem origem, ao que \u00e9 original, ao t\u00edpico, ao que tem car\u00e1ter distintivo e ao que \u00e9 caracter\u00edstico com todos os requisitos para serem reconhecidos como denomina\u00e7\u00f5es de origem, pois agregam origem, diferencia\u00e7\u00e3o e originalidade dos produtos\u201d, diz Jorge Tonietto, da Embrapa. O terroir do a\u00e7a\u00ed \u00e9 na chamada \u201cregi\u00e3o das ilhas\u201d, na foz do rio Amazonas, no Par\u00e1, em torno da parte ocidental da ilha de Maraj\u00f3 e do baixo Tocantins. N\u00e3o h\u00e1 fruto melhor em condi\u00e7\u00f5es naturais do que esse. Nem bebida de sabor mais puro do que aquela que \u00e9 vendida em centenas de pontos espalhados por todos os bairros de Bel\u00e9m, com seus 1,4 milh\u00e3o de habitantes.<\/p>\n\n\n\n

Nas melhores quitandas (que anunciam o produto com uma bandeira vermelha \u00e0 porta), o batedor \u00e9 um expert n\u00e3o s\u00f3 em produzir o l\u00edquido encorpado como um vinho tinto e denso como um chocolate, mas tamb\u00e9m em escolher o melhor fruto para esse processo. Os seus clientes habituais, que compram e tomam a\u00e7a\u00ed todos os dias (beneficiados pelo florescimento da palmeira o ano todo, em melhores condi\u00e7\u00f5es de julho a dezembro), exercem o controle de qualidade e d\u00e3o sugest\u00f5es. Se esse ciclo for rompido ou desaparecer, como amea\u00e7a acontecer, ser\u00e1 dif\u00edcil estabelecer um terroir para o a\u00e7a\u00ed, agregando-lhe os benef\u00edcios que ele teria da classifica\u00e7\u00e3o, como a champanhe francesa. Mas n\u00e3o s\u00f3 para ganhos maiores na exporta\u00e7\u00e3o: tamb\u00e9m para n\u00e3o tirar dos velhos apreciadores do melhor a\u00e7a\u00ed o direito de usufru\u00edrem esse prazer multissecular.<\/p>\n\n\n\n

Da mesma maneira como a produ\u00e7\u00e3o e a comercializa\u00e7\u00e3o cresceram aceleradamente, o pre\u00e7o para o comprador de a\u00e7a\u00ed em Bel\u00e9m e outras cidades amaz\u00f4nicas se multiplicou por cinco. Nos per\u00edodos de menor produ\u00e7\u00e3o (e de qualidade inferior), um litro de a\u00e7a\u00ed tem o pre\u00e7o de uma sobremesa cara de restaurante, como um brownie. Para muita gente a\u00e7a\u00ed \u00e9 mesmo sobremesa. Mas para uma parcela expressiva ele \u00e9 alimento, \u00e0s vezes a \u00fanica refei\u00e7\u00e3o forte do dia. Apesar do aumento exorbitante dos pre\u00e7os, quem tem o h\u00e1bito de tomar a\u00e7a\u00ed encontrou uma forma de n\u00e3o ficar sem ele. Na melhor das hip\u00f3teses, por\u00e9m, o peso desse costume est\u00e1 se tornando oneroso, prejudicando o or\u00e7amento dom\u00e9stico.<\/p>\n\n\n\n

At\u00e9 a explos\u00e3o do a\u00e7a\u00ed no mercado de academias de sa\u00fade e entre atletas, toda produ\u00e7\u00e3o vinha de \u00e1reas naturais, nas v\u00e1rzeas inund\u00e1veis das margens dos cursos d\u2019\u00e1gua. Hoje, 20% prov\u00eam de plantios manejados em terra-firme, que n\u00e3o oferece solo em condi\u00e7\u00f5es para uma cultura de melhor qualidade. Mas para que produzir o a\u00e7a\u00ed puro e grosso, se seu gosto vai ser dilu\u00eddo ou desaparecer pela presen\u00e7a de acompanhantes valorizados pelos consumidores atra\u00eddos pelo poder energ\u00e9tico e vitam\u00ednico do fruto \u2013 e que, ademais, nunca tiveram contato com o paladar original? O a\u00e7a\u00ed, mesmo sendo o item mais importante, \u00e9 um elemento do mix e n\u00e3o o componente \u00fanico, conforme \u00e9 para o gourmand do produto em Bel\u00e9m.<\/p>\n\n\n\n

Essa tend\u00eancia se consolidou quando, em 2007, nove fabricantes, que produzem para exporta\u00e7\u00e3o, assumiram com o Minist\u00e9rio P\u00fablico o compromisso de pasteurizar o seu produto. Neste ano, o senador acreano Ti\u00e3o Viana (PT) chegou a apresentar um projeto de lei tornando obrigat\u00f3ria para todos a pasteuriza\u00e7\u00e3o. A medida n\u00e3o s\u00f3 modifica drasticamente o gosto, tornando-o intrag\u00e1vel para o connaisseur, como colocaria no desemprego milhares de vendedores individuais, que atuam no varejo, em pequenos estabelecimentos comerciais. Felizmente a iniciativa foi abortada a tempo. Bastou mostrar ao senador o efeito nocivo da sua proposta, que ele, mesmo sendo da Amaz\u00f4nia, desconhecia.<\/p>\n\n\n\n

Antes, houve uma onda sensacionalista em torno da amea\u00e7a de surto de doen\u00e7a de Chagas porque o prozo\u00e1rio est\u00e1 presente no fruto e \u00e9 esmagado quando ele \u00e9 descaro\u00e7ado. Tanto tempo depois que o a\u00e7a\u00ed faz parte da mesa do paraense, foi a primeira vez que o problema se tornou alarmante. Mas nada sugere que a amea\u00e7a da doen\u00e7a sobreviva a cuidados de higiene e normas de qualidade, provid\u00eancias que os pr\u00f3prios vendedores passaram a adotar. O mesmo n\u00e3o se pode dizer do futuro do a\u00e7a\u00ed como um terroir paraense. Pode vir a se tornar um produto paulista, baiano ou texano, conforme a forma de apropria\u00e7\u00e3o que vem sendo feita, que inclui a patente. Tem sido esse o destino dos produtos naturais amaz\u00f4nicos, nos \u00faltimos anos, em especial, os min\u00e9rios. A Amaz\u00f4nia tem lugar no enredo atual para ser col\u00f4nia do mundo, n\u00e3o agente da sua pr\u00f3pria hist\u00f3ria.<\/p>\n\n\n\n

L\u00facio Fl\u00e1vio Pinto <\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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