{"id":2199,"date":"2008-12-19T14:25:36","date_gmt":"2008-12-19T14:25:36","guid":{"rendered":""},"modified":"2021-07-10T20:35:43","modified_gmt":"2021-07-10T23:35:43","slug":"no_futuro_como_no_passado","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/natural\/artigos\/no_futuro_como_no_passado.html","title":{"rendered":"No futuro como no passado"},"content":{"rendered":"\n
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\u201cVejam bem esta fotografia\u201d, diz o bot\u00e2nico Ghillean Prance, projetando na tela do Museu de Arte da Pampulha uma cena de \u00e1rvores queimadas. A imagem, que qualquer brasileiro pode ver a torto e a direito em beira de estrada, dificilmente chamaria a aten\u00e7\u00e3o da plat\u00e9ia, se Prance n\u00e3o dirigisse na Inglaterra o Real Jardim Bot\u00e2nico de Kew e o Eden. Ele esteve em Belo Horizonte exatamente para mostrar o que esse tipo de parque p\u00fablico pode fazer pela conserva\u00e7\u00e3o da natureza. <\/p>\n\n\n\n

Aquela queimada \u00e9 um peda\u00e7o dos impec\u00e1veis jardins de Kew. Fica na floresta de Wakehurst Place, nos arredores de Londres. E se trata mesmo de uma carvoaria. \u00c0 primeira vista, uma carvoaria como as brasileiras, que fazem parte de nossa paisagem pelo menos desde o s\u00e9culo XIX, quando o pintor F\u00e9lix Taunay flagrou seu trabalho sujo lambendo os morros do Rio de Janeiro. Mas com a vantagem de ser uma \u201ccarvoaria sustent\u00e1vel\u201d, operada por ilustres ambientalistas.<\/p>\n\n\n\n

T\u00e3o ilustres que Prance \u2013 ou melhor, Sir Ghillean Prance \u2013 \u00e9 cavaleiro do Reino Brit\u00e2nico desde 1995, por servi\u00e7os prestados \u00e0s ci\u00eancias naturais. Ele tem no curr\u00edculo mais de 360 artigos cient\u00edficos publicados. Duas plantas da Amaz\u00f4nia brasileira levam seu nome. Fala um portugu\u00eas fluente, heran\u00e7a dos quase nove anos que passou no Instituto Nacional de Pesquisas da Amaz\u00f4nia, implantando cursos de p\u00f3s-gradua\u00e7\u00e3o na beira da selva, em Manaus. Na Inglaterra, al\u00e9m de Kew, dirige o Eden Project, onde investimentos da ordem de cento e tantos milh\u00f5es de libras transformaram num ber\u00e7\u00e1rio de raridades vegetais uma cratera esqu\u00e1lida que a minera\u00e7\u00e3o de argila deixara para tr\u00e1s na Cornualha.<\/p>\n\n\n\n

Sua biografia parece feita sob medida para desmentir a velha lenda amaz\u00f4nica, que atribui \u00e0 pirataria de Kew Garden o fim do monop\u00f3lio mundial da borracha pelos seringais brasileiros. Na verdade, a transfer\u00eancia de seringueiras para o Ceil\u00e3o come\u00e7ou com a exporta\u00e7\u00e3o legal de mudas, que o Brasil autorizou no s\u00e9culo XIX por excesso de autoconfian\u00e7a. E deu no que deu. Na crise da borracha. A Hevea brasiliensis chegou \u00e0 \u00c1sia atrav\u00e9s das estufas de Kew e de l\u00e1 deu volta ao mundo, contornando o monop\u00f3lio brasileiro. E a proeza de aclimat\u00e1-la valeu a outro pesquisador de nossa flora nativa, Henry Wickham, o t\u00edtulo de cavaleiro do reino vegetal. <\/p>\n\n\n\n

Passado o caso da seringueira, veio Prance, abrindo caminho aos estudos sobre a \u201csustentabilidade das florestas tropicais\u201d sobre em terreno minado. \u00c9 dif\u00edcil esquecer seus antecedentes hist\u00f3ricos, ouvindo-o no audit\u00f3rio da Pampulha. A seu redor, havia t\u00e9cnicos e diretores de jardins bot\u00e2nicos do Brasil inteiro. Ou seja, trinta e poucos gatos pingados, sentados diante de um aut\u00eantico \u201clorde ingl\u00eas\u201d, como se chamavam os modelos nacionais de eleg\u00e2ncia masculina, antes que as lojas de roupa cedessem ao cerco da alfaiataria italiana. Mas, ao v\u00ea-lo, ningu\u00e9m diria. Usava cal\u00e7as jeans, meias brancas e um blazer desabotoado, que no frio ameno de Belo Horizonte deixava ver atrav\u00e9s da camisa social de pano fino as letras da camiseta de propaganda usada por baixo da roupa. Tem uma filha trabalhando nas favelas de Recife. E comparece religiosamente \u00e0s reuni\u00f5es da Rede Brasileira de Jardins Bot\u00e2nicos, o que em si j\u00e1 \u00e9 um sinal de mod\u00e9stia. <\/p>\n\n\n\n

A rede, que est\u00e1 multiplicando o n\u00famero de jardins bot\u00e2nicos no pa\u00eds, pode ter fun\u00e7\u00f5es muito relevantes em seu meio, mas vive da m\u00e3o para a boca. Em 2003, roeu um or\u00e7amento de R$ 2 mil. Este ano, na d\u00e9cima terceira edi\u00e7\u00e3o de seus encontros trienais, deu ao diretor de Kew o premio Doutora Graziela Maciel Barroso. E no dia seguinte, ele explicou por que. Como se precisasse explicar por que escolheram logo ele, um cientista ingl\u00eas, para abocanhar um trof\u00e9u batizado com o nome de uma pesquisadora nascida em Corumb\u00e1, que trabalhou at\u00e9 os 91 anos de idade no Jardim Bot\u00e2nico do Rio de Janeiro. Prance abriu a palestra sobre \u201cA sustentabilidade dos Jardins Bot\u00e2nicos\u201d com um slide desbotado, que nada a tinha a ver com seu assunto. Nele apareciam, de costas, uma mulher e duas meninas, caminhando pela al\u00e9ia de palmeiras do Jardim Bot\u00e2nico carioca. \u201c\u00c9 minha fam\u00edlia\u201d, esclareceu. \u201cTirei esta foto em 1998. Est\u00e1vamos chegando l\u00e1 para meu primeiro encontro com a Dra. Graziela\u201d. <\/p>\n\n\n\n

Apresentadas as credenciais de Prance, est\u00e1 na hora de voltar \u00e0 carvoaria de Wakehurst Place. Nela, segundo o diretor, o jardim tem \u201c\u00e1rea florestal consider\u00e1vel\u201d. Ou, pelo menos, com espa\u00e7o suficiente para alimentar os churrascos de fim-de-semana, que para isso queimam carv\u00e3o vegetal, vindo das florestas devastadas da \u00c1frica e da Am\u00e9rica do Sul. \u201cOitenta por cento do carv\u00e3o que os ingleses compram s\u00e3o importados. Ou seja, s\u00e3o o que restou da queima de madeira tropical de pa\u00edses pobres. E isso \u00e9 insustent\u00e1vel\u201d. <\/p>\n\n\n\n

O rem\u00e9dio foi entrar no mercado, vendendo nas lojas do Jardim Bot\u00e2nico de Kew o carv\u00e3o que \u00e9 feito ali mesmo, com \u00e1rvores que rebrotam depois de podadas. \u201c\u00c9 claro que o projeto Wakehurst n\u00e3o tem tamanho para abastecer toda a Inglaterra\u201d, ele disse. Mas serve para chamar a aten\u00e7\u00e3o para o problema e sua solu\u00e7\u00e3o dom\u00e9stica. \u201cPelo exemplo, queremos convencer os donos de bosques particulares na Inglaterra a fazerem a mesma coisa. Esperamos que essa pr\u00e1tica se estenda a muitos outros produtores. Criei at\u00e9 mesmo uma ONG para encorajar a produ\u00e7\u00e3o de carv\u00e3o na Inglaterra\u201d. <\/p>\n\n\n\n

Nessa trilha, o Kew Garden atualmente chega longe. No Zimb\u00e1bue, o professor David Cutler toca, com anatomistas de madeira formados nos laborat\u00f3rios da casa, um projeto para plantar madeira combust\u00edvel, de crescimento r\u00e1pido e alto teor cal\u00f3rico, em volta de aldeias africanas, evitando que elas continuem a calcinar as florestas da vizinhan\u00e7a. Na Mal\u00e1sia, onde a fabrica\u00e7\u00e3o de m\u00f3veis artesanais amea\u00e7ava a sobreviv\u00eancia das palmeiras de rat\u00e3, o professor John Dransflield ensina as popula\u00e7\u00f5es locais a cultiv\u00e1-las. Com a vantagem extra de que as \u201crat\u00e3s s\u00e3o trepadeiras e, portanto, precisam de \u00e1rvores para escor\u00e1-las. Suas planta\u00e7\u00f5es n\u00e3o s\u00e3o, portanto, monoculturas, e com isso asseguram que muitas esp\u00e9cies de \u00e1rvores das florestas originais sejam preservadas\u201d. <\/p>\n\n\n\n

Por essas e outras, as lojas de suvenir de Kew Garden hoje oferecem aos visitantes, al\u00e9m de carv\u00e3o, caf\u00e9 com certificado de proced\u00eancia, atestando que os gr\u00e3os foram cultivado \u00e0 sombra de florestas, terra vegetal para substituir a turfa que vem de terrenos pantanosos e adubo produzido por reciclagem de lixo. Nos restaurantes do parque, as verduras que v\u00e3o \u00e0 mesa t\u00eam que sair de hortas org\u00e2nicas. As \u00e1reas de compostagem, que antes ficavam meio escondidas, por n\u00e3o oferecerem aos turistas um espet\u00e1culo tipicamente buc\u00f3lico, foram agora escancaradas ao p\u00fablico, por seu valor educativo. <\/p>\n\n\n\n

Prance veio ao Brasil avisar que \u00e9 este o futuro dos jardins bot\u00e2nicos no planeta. Mas, ignorada pela imprensa nativa, sua advert\u00eancia passou quase em branco nas f\u00e9rias de julho. O que n\u00e3o deixa de ser uma prova de que continuam vivam as tradi\u00e7\u00f5es bot\u00e2nicas deste pa\u00eds, que ali\u00e1s tamb\u00e9m n\u00e3o deu muita trela \u00e0s idas e vindas de Henry Wickham entre a Amaz\u00f4nia e a Inglaterra, com suas sementes de seringueira.<\/p>\n\n\n\n

Marcos S\u00e1 Corr\u00eaa
\nwww.oeco.com.br
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