{"id":1766,"date":"2009-03-10T10:56:09","date_gmt":"2009-03-10T10:56:09","guid":{"rendered":""},"modified":"2021-07-10T20:15:06","modified_gmt":"2021-07-10T23:15:06","slug":"desmatamento_na_amazonia_a_miopia_do_debate","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/florestal\/artigos\/desmatamento_na_amazonia_a_miopia_do_debate.html","title":{"rendered":"Desmatamento na Amaz\u00f4nia: a miopia do debate"},"content":{"rendered":"\n

O governo brasileiro acaba de anunciar o \u00edndice anual (2003-2004) de desmatamento na Amaz\u00f4nia. Segundo o INPE, 2.6 milh\u00f5es de hectares (26 mil km2) de florestas vieram ao ch\u00e3o. Somente em 1995 registrou-se um valor maior (2,9 milh\u00f5es ha) do que o atual. Tal fato confirma a suspeita de que um novo patamar de desmatamento foi atingido, j\u00e1 que a taxa m\u00e9dia para os anos 90 n\u00e3o ultrapassou os 1.7 milh\u00f5es de ha. Contudo, passada a indigna\u00e7\u00e3o de praxe, a sensa\u00e7\u00e3o \u00e9 que o debate gerado n\u00e3o serviu para muita coisa. Talvez porque o debate tenha sido m\u00edope. O excessivo foco das discuss\u00f5es sobre o valor da taxa de desmatamento tem nos privado de uma discuss\u00e3o mais prof\u00edcua.<\/p>\n\n\n\n

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Todos conhecem as causas do desmatamento, mas pouco se debate sobre o tipo de desmatamento que \u00e9 e n\u00e3o \u00e9 aceit\u00e1vel ou necess\u00e1rio. Todos concordam que as taxas com que a floresta vem sendo derrubada devem ser reduzidas. <\/p>\n\n\n\n

H\u00e1 pouca concord\u00e2ncia sobre quanto deve ser uma redu\u00e7\u00e3o satisfat\u00f3ria, como consegui-la e onde implement\u00e1-la. A miopia vem, portanto, da falta de qualifica\u00e7\u00e3o do desmatamento. Para isso \u00e9 necess\u00e1rio aceitar a premissa de que em algumas \u00e1reas ele \u00e9 aceit\u00e1vel. Assumindo tal premissa, talvez seja mais f\u00e1cil identificar e atuar contra aquele desmatamento indesej\u00e1vel do ponto de vista social, econ\u00f4mico e ambiental.<\/p>\n\n\n\n

No ano passado, em 2004, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amaz\u00f4nia – IPAM, publicou um livro intitulado \u201cDesmatamento na Amaz\u00f4nia: indo al\u00e9m da emerg\u00eancia cr\u00f4nica\u201d, onde apresentamos sob qual \u00f3tica o desmatamento seria apropriado ou inapropriado. O desmatamento inapropriado seria aquele que visa apenas tomar posse de terras, ocorre em terras que n\u00e3o s\u00e3o aptas a produ\u00e7\u00e3o pretendida (morros, alagados, etc) e, por conseguinte \u00e9 ilegal (atinge a reserva legal e as \u00e1reas de prote\u00e7\u00e3o permanente). <\/p>\n\n\n\n

Por sua vez, o desmatamento apropriado seria aquele, necessariamente legal, mas tamb\u00e9m o realizado em solos aptos para agricultura e, portanto, com baixo risco de abandono precoce da atividade. Isso separaria o desmatamento que decorre das a\u00e7\u00f5es de grilagem \u2013 como aquele que tem afetado aceleradamente a regi\u00e3o da Terra do Meio e da abertura da estrada BR-163, no Estado do Par\u00e1, onde, segundo dados de 2003\/2004, se concentram tr\u00eas dos cinco munic\u00edpios campe\u00f5es do desmatamento \u2013 daquele desmatamento autorizado e permitido para cada propriet\u00e1rio no \u00e2mbito do C\u00f3digo Florestal. <\/p>\n\n\n\n

Defini\u00e7\u00f5es como estas poderiam ser \u00fateis para qualificar o debate sobre o desmatamento na Amaz\u00f4nia. No entanto, n\u00e3o h\u00e1 profus\u00e3o de tal debate. E isto acontece pela falta de informa\u00e7\u00f5es claras e oficiais sobre as origens e caracter\u00edsticas do desmatamento. Quem derruba mais, em que tipo de fronteira e sob qual din\u00e2mica (econ\u00f4mica e social) local (e n\u00e3o somente regional ou nacional) a floresta \u00e9 desmatada, s\u00e3o ainda quest\u00f5es sem respostas claras. <\/p>\n\n\n\n

Sem conhecer tais respostas, fica dif\u00edcil criar as bases para uma escolha acertada entre desmatamento desej\u00e1vel e indesej\u00e1vel. Se superarmos tais entraves, ser\u00e1 mais f\u00e1cil compreender o espanto em rela\u00e7\u00e3o ao an\u00fancio das taxas de desmatamento e nos orientarmos na busca de uma melhor pol\u00edtica de ocupa\u00e7\u00e3o da Amaz\u00f4nia. A corre\u00e7\u00e3o da miopia s\u00f3 ser\u00e1 conseguida quando deixarmos de discutir a flutua\u00e7\u00e3o das taxas para debatermos de uma vez por todas que tipo de ocupa\u00e7\u00e3o da Amaz\u00f4nia os brasileiros querem e sob quais condi\u00e7\u00f5es. <\/p>\n\n\n\n

Fronteiras<\/strong><\/p>\n\n\n\n

Nas \u201cFronteiras Empresariais\u201d de agropecu\u00e1ria consolidada, onde a viabilidade da agricultura em grande escala \u00e9 alta (Norte do Mato Grosso e Sul do Par\u00e1), o desafio principal em curto prazo \u00e9 o de fazer com que os produtores cumpram as determina\u00e7\u00f5es do C\u00f3digo Florestal. Uma oportunidade neste sentido \u00e9 a implementa\u00e7\u00e3o do sistema de licenciamento de propriedades rurais do Governo do Mato Grosso atrelado \u00e0 certifica\u00e7\u00e3o de propriedades e de produtos do agroneg\u00f3cio. No entanto, falta definir medidas complementares que desestimulem o desmatamento inapropriado e ilegal. Incentivos de mercado para aqueles que produzam de forma ambientalmente sustent\u00e1vel, como j\u00e1 ocorre na explora\u00e7\u00e3o florestal, poder\u00e3o proteger os recursos naturais em paisagens de alta produtividade agr\u00edcola e pecu\u00e1ria. <\/p>\n\n\n\n

Nas \u201cFronteiras Familiares\u201d, onde a agricultura familiar est\u00e1 consolidada ou em processo de consolida\u00e7\u00e3o, como a Transamaz\u00f4nica, o desafio principal \u00e9 fortalecer e apoiar as iniciativas de gest\u00e3o de recursos naturais j\u00e1 em andamento, como o Proambiente, as casas familiares rurais e investimento na gest\u00e3o de unidades de conserva\u00e7\u00e3o (p.ex. Terra do Meio). Apesar do desmatamento continuar nessas \u00e1reas, motivado principalmente pela expans\u00e3o das \u00e1reas de pastagem, existem associadas a esta, outras pr\u00e1ticas de uso do solo mais diversificadas e que trazem benef\u00edcios mais diretos para um maior n\u00famero de pessoas que vivem na regi\u00e3o. Portanto, estas \u00e1reas apresentam um cons\u00f3rcio de atividades associadas ao desmatamento que \u00e9 socialmente mais aceit\u00e1vel. <\/p>\n\n\n\n

Nas \u201cFronteiras de Expans\u00e3o Explosiva\u201d, onde o governo est\u00e1 ausente ou inexpressivo, o desmatamento ocorre de maneira fren\u00e9tica tendo a grilagem de terras e a explora\u00e7\u00e3o madeireira ilegal como sua for\u00e7a motriz, as interven\u00e7\u00f5es devem ser no sentido de conter o desmatamento e a explora\u00e7\u00e3o madeireira desordenada com exemplos de puni\u00e7\u00e3o imediata dos principais agentes da ilegalidade, at\u00e9 que a implementa\u00e7\u00e3o de um plano de ordenamento e gest\u00e3o territorial seja poss\u00edvel. Por exemplo, o desafio principal em \u00e1reas como Castelo de Sonhos, Novo Progresso e Moraes de Almeida, na rodovia Cuiab\u00e1-Santar\u00e9m, \u00e9 o de prevenir o desperd\u00edcio dos recursos naturais pelo desmatamento em \u00e1reas inapropriadas para a agricultura e pecu\u00e1ria e conter a extra\u00e7\u00e3o ilegal de madeira.<\/p>\n\n\n\n

Focalizando o debate sobre o desmatamento na Amaz\u00f4nia<\/strong><\/p>\n\n\n\n

1. O desmatamento deve ser encarado a partir da premissa de que h\u00e1 tipos de desmatamento que podem ser aceitos e trazem benef\u00edcios para a sociedade. O crit\u00e9rio de aceita\u00e7\u00e3o neste caso seria estabelecido pelo n\u00edvel dos benef\u00edcios para a sociedade e do impacto que causam sobre o ambiente. Ao assumir essa premissa, fica mais f\u00e1cil atuar de maneira focalizada sobre aquele desmatamento inapropriado.<\/p>\n\n\n\n

2. O desmatamento \u201cinapropriado\u201d, que deve ser alvo de programas de redu\u00e7\u00e3o, \u00e9 aquele que: (a) visa apenas tomar a posse da terra para especula\u00e7\u00e3o; (b) ocorre em terras inapropriadas para a agricultura ou a pecu\u00e1ria devido ao relevo acidentado, solos inadequados, altos \u00edndices de precipita\u00e7\u00e3o, dist\u00e2ncia elevada dos mercados e aus\u00eancia de estradas; (c) \u00e9 pouco produtivo; (d) \u00e9 ilegal (atinge a reserva legal e as \u00e1reas de prote\u00e7\u00e3o permanente); (e) ocorre em \u00e1reas de elevado valor para a conserva\u00e7\u00e3o ou utiliza\u00e7\u00e3o sustent\u00e1vel da biodiversidade (\u00e1reas ainda n\u00e3o protegidas por unidades de conserva\u00e7\u00e3o); (f) ocorre em \u00e1reas onde a melhor op\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica de uso da terra \u00e9 florestal \u2013 seja para produ\u00e7\u00e3o madeireira, n\u00e3o-madeireira, ou ambas.<\/p>\n\n\n\n

3. O desmatamento pode ser considerado \u201capropriado\u201d quando reunir os seguintes crit\u00e9rios: (a) seja realizado de forma legal, cumprindo os preceitos das leis ambientais (p.ex. o C\u00f3digo Florestal); (b) seja realizado em solos aptos para agricultura e produtivos; (c) ocorra em \u00e1reas com infra-estrutura adequada e, portanto, com baixo risco de abandono precoce da atividade; (d) traga benef\u00edcios socioecon\u00f4micos e ambientais \u00e0s popula\u00e7\u00f5es tradicionais da Amaz\u00f4nia (quilombolas, caboclos, ind\u00edgenas) e pequenos agricultores.<\/p>\n\n\n\n

4. Para evitar o desmatamento \u201cinapropriado\u201d ser\u00e1 necess\u00e1ria uma estrat\u00e9gia integrada baseada em processos de planejamento ao longo de novos corredores econ\u00f4micos, com a participa\u00e7\u00e3o das v\u00e1rias esferas de governo, incluindo as prefeituras e os diversos atores sociais existentes na regi\u00e3o. Decis\u00f5es econ\u00f4micas e pol\u00edticas interferem diretamente nos fluxos migrat\u00f3rios e no tipo de ocupa\u00e7\u00e3o ao longo dos corredores econ\u00f4micos da Amaz\u00f4nia. Estes corredores devem ser tratados como uma unidade geogr\u00e1fica dos processos de planejamento regional participativo. As rodovias em asfaltamento representam novos focos de desmatamento e s\u00e3o as \u00e1reas onde o governo e a sociedade civil podem ter o m\u00e1ximo de influ\u00eancia sobre a din\u00e2mica de convers\u00e3o da cobertura vegetal. <\/p>\n\n\n\n

Este processo j\u00e1 est\u00e1 em andamento, liderado pela sociedade, na Transamaz\u00f4nica, na Cuiab\u00e1-Santar\u00e9m e na Transoce\u00e2nica (estrada para o Pac\u00edfico).<\/p>\n\n\n\n

5. Dentro dos planos de desenvolvimento de cada corredor econ\u00f4mico \u00e9 necess\u00e1ria uma abordagem diferenciada para cada tipo de fronteira, visando a gest\u00e3o de recursos naturais que maximize os benef\u00edcios para a sociedade amaz\u00f4nica e brasileira como um todo.<\/p>\n\n\n\n

——————<\/p>\n\n\n\n

Criado em 1995, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amaz\u00f4nia – IPAM \u00e9 uma organiza\u00e7\u00e3o ambiental n\u00e3o governamental sem fins lucrativos. O IPAM re\u00fane pesquisadores e educadores que compartilham o compromisso de gerar informa\u00e7\u00f5es cient\u00edficas e formar recursos humanos, contribuindo para um processo de desenvolvimento da Amaz\u00f4nia que atenda as aspira\u00e7\u00f5es sociais e econ\u00f4micas da popula\u00e7\u00e3o, e ao mesmo tempo mantenha a integridade funciona do ecossistema regional.<\/p>\n\n\n\n

Ane Alencar – Pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amaz\u00f4nia \u2013 IPAM
\nFonte: Revista Eco 21, ano XV, N\u00ba 103 junho\/2005.
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