{"id":1330,"date":"2009-02-05T14:24:47","date_gmt":"2009-02-05T14:24:47","guid":{"rendered":""},"modified":"2021-07-10T20:32:42","modified_gmt":"2021-07-10T23:32:42","slug":"a_etica_e_os_animais","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/fauna\/artigos\/a_etica_e_os_animais.html","title":{"rendered":"A \u00c9tica e os Animais"},"content":{"rendered":"\n

A exclus\u00e3o tem sido, ao longo dos tempos, o mecanismo mais eficaz para garantir a identidade e coes\u00e3o de um grupo, quer se trate de tribos, na\u00e7\u00f5es, ra\u00e7as, sexos ou esp\u00e9cies, ao que a \u00e9tica responde com o alargamento progressivo da esfera de considera\u00e7\u00e3o moral, at\u00e9 atingir a universalidade, na esfera do humano, com a Declara\u00e7\u00e3o Universal dos Direitos do Homem. No entanto, a racionalidade (\u00e0 qual \u00e9 h\u00e1bito associar a linguagem, a meu ver, de forma err\u00f4nea), mant\u00e9m-se, ainda, como diferen\u00e7a espec\u00edfica do Homo sapiens sapiens, impedindo a ultrapassagem da \u00faltima barreira \u00e9tica, a saber, o preconceito especista. No entanto, o que se me afigura digno de nota, \u00e9 n\u00e3o ser sequer a dita racionalidade o verdadeiro crit\u00e9rio distintivo do animal humano em face dos restantes animais, mas sim algo muito mais aleat\u00f3rio que justifica bem melhor a qualifica\u00e7\u00e3o do especiecismo como preconceito e que \u00e9 denunciado, j\u00e1 no S\u00e9culo 17, por John Locke, em \u201cO Ensaio sobre o Entendimento Humano\u201d.<\/p>\n\n\n\n

\"q\"\/<\/figure>\n\n\n\n
<\/div>\n\n\n\n

Vejamos o que nos diz o fil\u00f3sofo ingl\u00eas: \u201c[\u2026] Penso poder estar seguro que quem quer que veja uma criatura com a sua pr\u00f3pria forma e feitio, embora esta nunca tenha tido durante toda a sua vida mais raz\u00e3o do que um gato ou um papagaio, ainda lhe chamaria um Homem; ou quem quer que ou\u00e7a um gato ou um papagaio falar, raciocinar e filosofar chamar-lhes-ia ou pensaria n\u00e3o serem mais do que um gato ou um papagaio e diriam que aquele era um Homem est\u00fapido e irracional e este um papagaio muito inteligente e racional\u201d.<\/p>\n\n\n\n

A \u201cforma e o feitio\u201d, n\u00e3o a capacidade de raciocinar, s\u00e3o, pois, os verdadeiros crit\u00e9rios determinantes do que \u00e9 humano, uma vez que um gato ou um papagaio n\u00e3o passam a ser homens pelo seu hipot\u00e9tico elevado grau de racionalidade, nem tampouco um ser humano o deixa de ser por apresentar graves defici\u00eancias mentais. Mas, suponhamos que Locke est\u00e1 errado e que a raz\u00e3o \u00e9, realmente, o tra\u00e7o distintivo do humano.
N\u00e3o nos obrigar\u00e1 este crit\u00e9rio a excluir da humanidade todos aqueles que, no dizer do fil\u00f3sofo, \u201cnunca tenham tido durante toda a sua vida mais raz\u00e3o do que um gato ou um papagaio\u201d? N\u00e3o nos repugna tal discrimina\u00e7\u00e3o como imoral, da mesma forma que nos repugnam todas as formas de racismo, sexismo e outras? Ora, \u00e9 justamente a este tipo de exclus\u00e3o que est\u00e3o sujeitos milh\u00f5es de seres cujo \u00fanico crime \u00e9 n\u00e3o pertencer \u00e0 esp\u00e9cie \u201ccerta\u201d e n\u00e3o apresentar um QI semelhante ao humano.<\/p>\n\n\n\n

Uma \u00e9tica que se queira verdadeiramente universal n\u00e3o pode fundar-se em fatos \u2013 ainda que n\u00e3o os deva ignorar \u2013 mas erigir em valor, ou seja, em objeto de considera\u00e7\u00e3o \u00e9tica, o bem pr\u00f3prio de cada ser, segundo a distin\u00e7\u00e3o de Moore, reafirmada por Peter Singer em \u201cA Darwinian Left\u201d. Assim sendo, torna-se t\u00e3o absurdo afirmar que algu\u00e9m \u00e9 ou n\u00e3o merecedor de considera\u00e7\u00e3o \u00e9tica consoante \u00e0 cor da sua pele, como fazer depender aquela da esp\u00e9cie a que pertence, pois se trata, em ambos os casos, de fatos biol\u00f3gicos, n\u00e3o de valores \u00e9ticos. Perguntar- se-\u00e1, ent\u00e3o, qual o crit\u00e9rio que devemos utilizar para a determina\u00e7\u00e3o do valor \u00e9tico de qualquer entidade, uma vez desmontado o preconceito especiecista respons\u00e1vel por todas as \u00e9ticas antropoc\u00eantricas. Hesito na escolha de um \u00fanico crit\u00e9rio capaz de dar resposta a todos os casos; menciono dois que me parecem eticamente complementares: a senci\u00eancia e a integridade\/dignidade.<\/p>\n\n\n\n

Quando Singer defende, numa linha utilitarista, que \u201co limite da senci\u00eancia […] \u00e9 a \u00fanica fronteira defens\u00e1vel para a preocupa\u00e7\u00e3o pelos interesses dos outros\u201d, est\u00e1 afirmando que a capacidade de sentir \u2013 prazer e dor \u2013 constitui um pr\u00e9-requisito para a pr\u00f3pria posse de interesses cuja satisfa\u00e7\u00e3o cabe \u00e0 \u00e9tica garantir; ou seja, ser pass\u00edvel de considera\u00e7\u00e3o \u00e9tica implica ter interesses e ter interesses implica ser capaz de sentir, o que, por seu turno, n\u00e3o significa apenas viver, mas lutar para preservar a vida, n\u00e3o apenas satisfazer as suas necessidades b\u00e1sicas, mas perseguir, por iniciativa pr\u00f3pria, essa satisfa\u00e7\u00e3o e preocupar-se em obt\u00ea-la, numa palavra, pressup\u00f5e qualquer refer\u00eancia a si como entidade aut\u00f4noma: algu\u00e9m e n\u00e3o somente alguma coisa. Ora, em todos os animais detentores de consci\u00eancia\/de si, mem\u00f3ria, capacidade de projetar-se no futuro (primatas e mam\u00edferos), existe algu\u00e9m que sofre e que deseja deixar de sofrer, ou algu\u00e9m que se sente bem e deseja prolongar esse bem-estar, evitando o malestar, o que torna eticamente conden\u00e1vel toda a inflic\u00e7\u00e3o de dor ou sofrimento que n\u00e3o tenha em vista um bem-estar maior para aquele a quem \u00e9 infligido, sobretudo, se tivermos em conta o cariz sup\u00e9rfluo da maior parte dos interesses humanos em nome dos quais tal sofrimento \u00e9 provocado (ex: exig\u00eancias da moda, do paladar, uso de cosm\u00e9ticos, formas de lazer, etc.).<\/p>\n\n\n\n

Se o sofrimento p\u00f5e de forma inequ\u00edvoca em causa a integridade\/dignidade dos seres sencientes, podemos, contudo, antever alguns casos em que a diminui\u00e7\u00e3o da dor venha acompanhada de perda daqueles atributos. Suponhamos que um estudo etol\u00f3gico revela que as galinhas cegas s\u00e3o menos agressivas e n\u00e3o se mutilam entre si com a mesma freq\u00fc\u00eancia do que as galinhas normais. Por sua vez, gra\u00e7as \u00e0 engenharia gen\u00e9tica, seria poss\u00edvel criar um novo tipo de galinhas cuja incapacidade visual permitiria poupar-lhes o sofrimento resultante da sua agressividade natural. Numa l\u00f3gica puramente utilitarista, tal forma de manipula\u00e7\u00e3o gen\u00e9tica constituiria um bem e deveria ser incentivada, ao passo que, do ponto de vista da integridade psicof\u00edsica do animal, representaria, ela mesma, uma forma de mutila\u00e7\u00e3o. Assim, se o sofrimento deve estar na primeira linha de combate, na protec\u00e7\u00e3o aos animais n\u00e3o-humanos, \u00e9 preciso lembrar que h\u00e1 outras formas de atentar contra a sua integridade, de que o exemplo dado \u00e9 um caso limite, mas para as quais todos n\u00f3s, em maior ou menor grau, com mais ou menos consci\u00eancia, contribu\u00edmos, quando cedemos \u00e0 tenta\u00e7\u00e3o de antropomorfizar os animais com quem convivemos diariamente.<\/p>\n\n\n\n

Ao serem, na express\u00e3o de Tom Regan, \u201csujeitos-de-uma-vida\u201d, os animais t\u00eam direito \u00e0 sua pr\u00f3pria vida e n\u00e3o \u00e0quela que julgamos melhor para eles, segundo os nossos pr\u00f3prios par\u00e2metros, o que, no entanto, n\u00e3o impede, a meu ver, o benef\u00edcio m\u00fatuo, sobretudo em n\u00edvel afetivo, que pode advir do conv\u00edvio entre humanos e outros animais. \u00c9, precisamente, esta troca e esta d\u00e1diva m\u00fatua que n\u00e3o s\u00e3o capazes de entender e de experimentar todos aqueles que p\u00f5em, como motiva\u00e7\u00e3o \u00faltima para o tratamento digno dos animais, a preserva\u00e7\u00e3o da integridade moral dos humanos, ou seja, deveres indiretos para com aqueles.<\/p>\n\n\n\n

N\u00e3o estamos, aqui, perante um ju\u00edzo condicional, mas categ\u00f3rico, ou seja, n\u00e3o \u00e9 se tratar bem os animais que n\u00e3o me degrado moralmente, mas, ao faz\u00ea-lo, estou, n\u00e3o s\u00f3 a respeit\u00e1- los na sua integridade, como , por acr\u00e9scimo, a enriquecer a minha experi\u00eancia pessoal e a alargar a minha consci\u00eancia moral, o que me obriga a ter, para com os animais n\u00e3ohumanos, deveres diretos. N\u00e3o h\u00e1, pois, que p\u00f4r em alternativa a prote\u00e7\u00e3o \u00e0s crian\u00e7as, aos deficientes ou aos animais, mas consider\u00e1-las em simult\u00e2neo, movidos pela mesma coer\u00eancia com que temos vindo a alargar de modo sucessivo a esfera da considera\u00e7\u00e3o moral a todas as formas de alteridade n\u00e3o padronizadas. Esta atitude, longe de significar uma qualquer perda da identidade humana, surge, pelo contr\u00e1rio, como sinal da sua maturidade, pois, \u201ccomo uma pessoa que continuamente se olha ao espelho, parecemos possuir uma irritante inseguran\u00e7a acerca da imagem que fazemos de n\u00f3s pr\u00f3prios. Os nossos ruidosos acessos de superioridade sugerem, n\u00e3o que tenhamos uma verdadeira auto-confian\u00e7a, mas que somos bastante inseguros. […] Somos os membros mais recentes na fam\u00edlia da vida \u2013 os perp\u00e9tuos rec\u00e9m-nascidos do mundo animal. De um modo fundamental, precisamos que outras criaturas nos digam quem somos.\u201d (Gary Kowalski, \u201cThe Souls of Animals\u201d).<\/p>\n\n\n\n

Resta-me fazer votos para que, um dia, deixemos de falar em \u201c\u00e9tica animal\u201d ou reservemos a express\u00e3o para a parte da Etologia reservada ao estudo do comportamento \u00e9tico dos animais entre si, para passar a falar t\u00e3o-s\u00f3 em \u00e9tica. Nesse momento, os objetivos deste artigo ser\u00e3o integralmente cumpridos.<\/p>\n\n\n\n

Cristina Beckert
\nEt\u00f3loga, Fil\u00f3sofa e professora da Universidade de Lisboa
\nEco 21 – Ano XIV – n\u00ba 97 – Dezembro – 2004 (www.eco21.com.br)<\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

A exclus\u00e3o tem sido, ao longo dos tempos, o mecanismo mais eficaz para garantir a identidade e coes\u00e3o de um grupo, quer se trate de tribos, na\u00e7\u00f5es, ra\u00e7as, sexos ou esp\u00e9cies, ao que a \u00e9tica responde com o alargamento progressivo da esfera de considera\u00e7\u00e3o moral, at\u00e9 atingir a universalidade, na esfera do humano, com a Declara\u00e7\u00e3o Universal dos Direitos do Homem. <\/a><\/p>\n<\/div>","protected":false},"author":2,"featured_media":1331,"comment_status":"closed","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"footnotes":""},"categories":[1463],"tags":[23,907,125],"_links":{"self":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/1330"}],"collection":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=1330"}],"version-history":[{"count":1,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/1330\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":5317,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/1330\/revisions\/5317"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/media\/1331"}],"wp:attachment":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=1330"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=1330"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=1330"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}