Biodiversidade Araneológica na cidade de São Paulo: a urbanização afeta a riqueza de espécies?

A ecologia urbana é uma área de pesquisa relativamente recente e o ambiente urbano, consequentemente, é um ecossistema ainda pouco conhecido. O adensamento urbano leva a uma concentração de recursos e de resíduos, a alterações na paisagem, no clima, no sistema de drenagem, uso do solo, alterações estas que criam inúmeros novos microecossistemas, como rodovias e estradas de ferro, cinturões verdes e cemitérios, parques, áreas residenciais, comerciais e industriais, lixões, etc (para um tratamento detalhado do funcionamento destes microecossistemas antropizados, veja Gilbert, 1989). A fauna atual das cidades é afetada por inúmeros fatores, tanto ecológicos quanto históricos, sendo um reflexo não apenas de uma depauperação da composição faunística original (anterior aos processos de urbanização), mas também da repetida introdução de espécies exógenas; ela é fruto não apenas desta diversidade atual de microecossistemas urbanos, mas também de fluxos de fauna entre tais microecossistemas, de efeitos de borda e de gradientes locais e gerais de urbanização; as intervenções humanas regulares, tais como técnicas de jardinagem, uso de pesticidas, herbicidas e inseticidas constituem um último e importante fator que define a composição faunística nas cidades. Dessa forma, as cidades emergem como um sistema ecológico complexo, com uma dinâmica muito particular, e que merece atenção da comunidade científica não apenas pelo interesse acadêmico de compreensão das variáveis que o determinam, mas também, e principalmente, pelo fato de que as espécies que o compõem frequentemente adquirem importância econômica, estética ou afetiva, requerendo muitas vezes medidas de controle populacional (Robinson, 1996).

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O manejo da fauna urbana se torna tão mais viável de um ponto de vista econômico, quanto mais conhecida é sua composição, abundância, distribuição geográfica, e padrões sazonais/diários de atividade. Tal caracterização básica da fauna urbana ainda é muito precária em uma cidade como São Paulo, fazendo-se necessário um esforço de coleta e centralização de tais informações para que se possa subsidiar políticas públicas de manejo da paisagem.

Inventariando a fauna urbana

Uma das primeiras providências neste sentido é a realização de um inventário da fauna da cidade. Nossa equipe no Laboratório de Artrópodes concluiu recentemente um levantamento de dois anos da fauna araneológica em áreas da zona oeste da cidade de São Paulo, utilizando-se de um protocolo de coleta (Coddington et al., 1991) com ajustes para trabalho diurno.

Amostramos igualmente duas áreas verdes (reserva da CUASO, cidade Universitária, e Parque Municipal da Previdência) e áreas urbanizadas públicas contíguas a tais remanescentes de mata.

Em uma segunda fase do projeto realizamos coletas manuais nos quintais das residências e no interior das residências, nestas mesmas áreas. Para coletas nas casas foram deixados potes plásticos nos quais os moradores depositavam as aranhas encontradas no período de uma semana. Todo o material foi triado, morfoespeciado, e depositado na coleção do Instituto Butantã.

Paralelamente a esta amostragem sistematizada, realizamos um levantamento das aranhas que foram trazidas ao Laboratório de Artrópodes neste mesmo período, oriundas da cidade de São Paulo, de modo a completar a listagem com espécies menos freqüentes ou pouco amostradas através dos métodos tradicionais de coleta.

Riqueza de espécies: cidade X mata

O resultado de todo este esforço nos pareceu bastante surpreendente. Coletamos um número elevado de espécies tanto nas reservas quanto nas áreas urbanizadas, perfazendo um total de 240 espécies na cidade como um todo. Dentre os vários estimadores de riqueza utilizados o que apresentou melhor desempenho (maior estabilização no final da curva) foi o Chao 1, que estimou a riqueza (número de espécies) araneológica da cidade de São Paulo em 314,25 espécies. A título de comparação, em uma coleta semelhante (que se utilizou dos mesmos métodos – sem as modificações que introduzimos nas áreas urbanas – ao longo de 6 meses) realizada no Parque Estadual da Serra da Cantareira, extensa área de mata preservada na zona norte do Município de São Paulo, foram obtidas cerca de 350 espécies de aranhas. Se considerarmos este mesmo esforço de coleta em nossos dados, veremos que nos primeiros 6 meses de nossa pesquisa coletamos 160 espécies, um número não muito diferente das 350 espécies obtidas na mata preservada da Serra da Cantareira. O que podemos concluir destas análises preliminares é que o estabelecimento de uma malha urbana, desde que ela permita a presença de parques, áreas verdes, praças, áreas de lazer e mesmo terrenos baldios (ou seja, desde que ela seja semelhante às áreas por nós amostradas), não afeta significativamente a riqueza de espécies de aranhas.

Riqueza de espécies dentro da cidade: áreas verdes X urbanizadas

Embora as áreas verdes tenham mais espécies (202 spp) que as áreas urbanizadas (137 spp), a diferença entre elas foi bem menor do que esperávamos. Mais surpreendente ainda é o fato de que, dentre as espécies coletadas, cerca de 25% ocorre apenas nas áreas urbanizadas, contra 50% de espécies exclusivas das áreas verdes (o restante ocorrendo em ambos os sistemas). Isto significa que ao menos metade das espécies de áreas urbanizadas não são provenientes das matas contíguas, e que um quarto do total de espécies só existe em função das atividades antrópicas. Embora a urbanização pareça ter um pequeno efeito sobre a riqueza de espécies, ela é decisiva para a sua composição: a malha urbana apresenta uma fauna rica e extremamente característica.

A abundância (número de indivíduos) também é maior nas áreas verdes, que totalizaram 65% dos exemplares coletados, mas este maior número de indivíduos é devido basicamente ao também maior número de espécies: ambas as áreas apresentam um número médio de 6 exemplares por espécie.

Dessa forma, a urbanização, desde que preservando trechos da cobertura original, parece favorecer um número surpreendentemente elevado de espécies de aranhas, e não apenas de espécies introduzidas. Estas espécies caracteristicamente urbanas são provavelmente relictos da fauna de ecossistemas de paisagem aberta previamente existentes na cidade, tais como manchas de cerrado, campos sujos e campos limpos.

Mais estudos são necessários para o detalhamento da dinâmica de ocupação das áreas urbanas pelas aranhas e para se avaliar o impacto desses animais no conjunto da comunidade urbana. A partir dos resultados do conjunto de tais pesquisas é que se pode delinear formas integradas e racionais de controle da fauna araneológica urbana.

Referências Bibliográficas

Coddington, J.A., C.E. Griswold, D. Silva Dávila, E. Peñaranda & S.F. Larcher. 1991. Designing and testing sampling protocols to estimate biodiversity in tropical ecosystems. In Dudley, E.C. (ed.) The unity of evolutionary biology: proceedings of the fourth International Congress of Systematic and Evolutionary Biology. Dioscorides Press, Portland, pp.44-60.

Colwell, R.K. & J.A. Coddington. 1994. Estimating terrestrial biodiversity through extrapolation. Phil. Trans. R. Soc. Lond. B 345: 101-118.

Gilbert, O.L. 1991. The ecology of urban habitats. Chapman & Hall, London, 369pp.

Robinson, W.H. 1996. Urban entomology. Chapman & Hall, London, 430pp.

Por Hilton Ferreira Japyassú e Antonio Brescovit
Fonte:Laboratório de Artrópodes/ Instituto Butantan/ Av. Vital Brazil 1500/ 05503-900/ São Paulo – SP